CARTA AO REI2022-11-15T22:01:48+00:00

CARTA AO REI

          Em janeiro de 1542, dois anos depois da fuga de D. Miguel da Silva para Roma (julho de 1540), o rei D. João III assina o decreto da sua desnaturalização. Sendo um decreto que, para além do seu banimento do reino, incluía ainda um vasto conjunto de acusações e de penas duríssimas, ele não fica sem resposta. É essa resposta notável que apresentamos aqui.
          Se a carta original enviada ao rei, decerto escrita em Português, se perdeu, dela a Biblioteca Vaticana guarda uma tradução italiana, muito provavelmente feita pelo próprio e destinada a ser lida pelo Papa e por todos os círculos letrados de Roma e de Itália. A tradução que apresentamos, embora tenha em conta a sua primeira versão portuguesa incluída na obra Portugal no Concílio de Trento (vol. I, pp. 360-381) do Padre José de Castro, dela diverge em muitos pontos.
          O manuscrito pode ser consultado aqui (fol. 267r-276v, a partir da imagem 28). O Decreto real, também em tradução italiana, pode ser lido imediatamente antes (fol. 266v-266r).

Resposta do Cardeal de Viseu ao decreto condenatório de Dom João III (1542)

          Tendo  eu lido o decreto do meu Rei  contra mim; e sendo tal que se vê claramente o que por outras vias se sabe – que de cá saíu a forma e não ser obra da santa e católica intenção de Sua Alteza; e que quem aconselhou de cá esta coisa não sabia o que ocorria entre mim e Sua Alteza e que Sua Alteza assinou por baixo sem lhe ser recordado o que se tinha passado; parece-me conveniente e necessário tocar, breve e claramente, os pontos principais, para que todos saibam como são as coisas, e que todo o mal procede das sinistras e inimigas informações, e não da ótima natureza do Rei, nem da sua mente.

          Em primeiro lugar, o decreto foi feito e publicado em Lisboa no dia 23 de Janeiro próximo passado, sabendo já muitos dias antes Sua Alteza, por cartas do Il.mo e Rev.mo Senhor Cardeal Farnese e do Rev.m0 Senhor Santiquatro, e dos seus embaixadores, e de Mons. António Ribeiro, que eu fora criado e publicado Cardeal por Nosso Senhor, e particularmente do modo e mente de Sua Santidade; e sendo a coisa pública então, não só na sua Corte, mas em todo o Portugal, nem ao menos o Rei me chama cardeal, por sugestão de cá – crendo poder fazer contra os bispos o que não pode contra os cardeais, ou que se possa separar a minha pessoa da do cardeal, como disse Mons. Rev.mo Santiquatro a mais pessoas: o que o Rei fazia, dizia ele, não era contra o Cardeal de Viseu,  mas contra Dom Miguel. Deixo aos outros o encargo de pensar quanto isto seja ridículo.

          Disse quem redigiu o decreto que eu sou pessoa a quem Sua Alteza comunicava os seus segredos e do seu reino e coroa; e não diz que, a respeito de comunicação de segredos, que nunca a mim se disseram coisas que não tivessem sido antes comunicadas a muitos e quase publicamente; antes ordinariamente o eram aos meus inimigos, as mais das vezes antes de deliberadas, com grandíssima vergonha minha e injúria, procurando fazer tudo ao contrário da qualidade da minha pessoa e dos privilégios do meu ofício.

          Disse que eu jurei de servir bem e fielmente, de guardar os segredos do seu conselho e de obedecer como a meu Rei e Senhor; ora o juramento dos conselheiros não contém outra coisa senão dar bom e fiel conselho e de guardar os segredos que no conselho lhe são comunicados até que se saibam de outra procedência. Estas coisas eu as observei sempre inteiramente, servindo bem e fielmente; e por aconselhar com boa fé e com a liberdade que me parecia conviesse, incorri no que todos sabem. E segredos não descobri nunca, nem descobrirei, se bem que eu possa sem erro algum dizer o que sei, porque não sei coisa que não saiba todo o reino; nem sei entender, assim sendo, que tivesse de fazer este juramento com a culpa de ter partido do Reino, na qual se funda o Decreto, não tendo eu descoberto, nem estando para descobrir, segredo algum; pois a não partir não é obrigada pessoa alguma, principalmente os padres e bispos, em tudo e por tudo súbditos do Papa; e o juramento da consagração cancela todos os outros; e a obrigação de vir a Roma desquita da obrigação de esperar licença, nem de obedecer aos Príncipes não a dando, porque obedire oportet Deo magis, quam hominibus; e o juramento de obedecer ao Rei, como meu Rei que é, isto entende-se e realmente se costuma fazer quando o novo Rei é jurado; mas isto não se entende nas coisas tocantes à maior obrigação, nem liga padres e muito menos bispos em coisa alguma que prejudique direta ou indiretamente a liberdade eclesiástica, o que seria incorrer em gravíssimas censuras, não observando o seu próprio juramento.

          Os Reis, por sua vez, juram também eles e expressamente garantir todos os privilégios da Igreja e pessoas eclesiásticas, e de os manter em inteira liberdade, o que se contrariaria claramente se se impusesse tal servidão aos prelados; e quando o Rei a quis impor por causa dos cristãos novos de Portugal, sob pretexto que se iriam a fazer judeus, foi determinado que o não podia fazer, que era caso em que o Papa podia ser chamado, e que para não perseverar e temendo-se de alguma outra coisa, não se procedesse mais além; e cada um é livre naquele reino quanto mais os bispos. E El-Rei, na primeira carta que me escreveu, na qual diz ter-me chamado a si, não faz menção de tal juramento tácito dos segredos; e eu lhe respondi que ao Papa o tinha dado expressamente, e que nem um nem outro me podiam obrigar a esperar a morte sem propósito.

          Diz que eu tive o bispado de Viseu com a apresentação e súplica de Sua Alteza. Que eu o tenha tido por sua súplica, não o neguei nunca, antes sempre e publicamente, e secretamente sendo bispo, me chamei e escrevendo-lhe me subscrevi criatura de Sua Alteza; embora ele quisesse de mim, quando se deliberou a pedir por mim ao Papa, os sete mil ducados de ouro de entrada dos benefícios e pensões que eu tinha, não valendo nunca o bispado seis mil como é público; nem dos sete mil ducados de entrada de ouro que assim deixei, tive de Sua Alteza ao menos um só ducado de entrada, nem de mercês; e assim é que nisto eu fiquei grandemente prejudicado, porque o ofício de escrivão de puridade tive-o de seu Pai, antes que ele nascesse, por grandes serviços feitos à coroa de Portugal por meu pai e a ele, tão grandes que são notíssimos em toda a Espanha. E eu confesso bem que em Sua Alteza conheci ótima vontade, que sempre me obrigou, se bem que os efeitos nunca se tivessem seguido, porque os meus inimigos souberam fazer de modo que nunca Sua Alteza os pôde pôr em execução.

          Diz que eu recebi de Sua Majestade muitas honras e favores: assim o disse e preguei sempre, mais por minha honra, do que por ser uma verdade; e agora que isto se diz para me inculpar, declaro que nunca em Portugal um homem da minha qualidade, que tanto tem servido, e em coisas tão grandes e tão notáveis e tão conhecidas nesta corte e noutras, foi pior tratado pelo seu Rei ou Príncipe, nem recebeu injúrias e ofensas maiores do que eu, desde o dia que Sua Majestade foi aclamado Rei. E deixando de lado coisas infinitas e já todas públicas entre nós, quem não sabe como eu fui chamado, sendo embaixador em Roma, a instância dos meus inimigos? E quem não conhece o modo que teve no vir e chegar a Roma Dom Martinho, depois de tantos serviços meus? E isto sendo eu chamado por Sua Majestade, nas suas palavras, para servir-se de mim no meu ofício e em outras coisas, mas na verdade, movido pelas informações falsas e mentirosas, para tirar-me o bem e a dignidade que parecia que o Papa Clemente, de santa memória, me havia de dar; dissimulando ou não sabendo que aquela mesma dignidade me fora oferecida pela santa memória de Leão X, e eu a não quisera aceitar.

          Chegado que fui à corte, não só não encontrei livre o oficio para o poder exercer, como me tinha sido prometido oralmente, e por Sua Majestade em carta a mim escrita, e o próprio Dom Martinho o prometeu ao Papa Clemente, como fui posto entre as mãos do Conde de Linhares, meu cunhado e primo de Sua Majestade, que então exercia o dito ofício por mim; e quase discutimos por eu querer perder o ofício a fim de não perder o amigo ou parente; e com dificuldade grande se pacificou a coisa, andando porém eu na corte muitos e muitos meses mais como litigante do que era meu do que como oficial d’el-Rei.

          De mais, tendo-me feito graça do bispado e de suplicar por mim, e sendo publicada a coisa no seu todo, Sua Majestade, movido de pessoas inimigas, recuou e mostrou que se arrependera em tudo: e tendo o secretário António Carneiro na sua mão o meu mandato para poder renunciar a todos os meus benefícios e pensões já referidos, retém-me, sem me dar as cartas que escrevia ao Papa, quase um ano; no qual tempo, para dar cor ao seu arrependimento em relação à minha honra, indagou de mim e da minha vida muitas pessoas e empenhou-se quanto pôde para achar em mim culpas ou deméritos; e não achando nada, antes vendo os meus serviços públicos, e que toda a nobreza por minha causa se lamentava de Sua Majestade, por fim ficou contente com a recompensa dos referidos 7 mil ducados. E estas são as honras e as graças que tive; que na verdade julgo ser obra maligna dos meus inimigos, que não queriam em torno de Sua Majestade nem liberdade, nem verdade; e não pela sua livre vontade.

          Diz que eu, sendo obrigado a obedecer a Sua Majestade, fugi ocultamente do reino sem lhe pedir licença, depois de me ter ordenado que não partisse. Respondo que quem foge tendo motivo para fugir, ou por segurança da vida ou por perigo da honra, não é obrigado a pedir licença, porque a mesma causa, se ela é justa, a dispensa; e eu, se bem que estivesse certo que não me seria concedida e que ficando me punha em perigo, pedi-a, no entanto, humildemente a Sua Majestade, não pensando porém então no que se seguiria depois, mas por ter sido chamado por Nosso Senhor por três Breves ao concílio, e não podendo faltar por causa do devido juramento; e Sua Alteza não ma quis conceder. E afirmando eu que não estava para faltar de modo algum à minha obrigação, aconselhado pelos meus inimigos, disse-me que eu me fingisse doente. Respondi que por ele estava pronto a morrer se necessário fosse, mas que não queria mentir a Deus e ao Papa. E dizendo-me que eu estivera muito tempo doente e que não era mentir, respondi que era verdade, mas exatamente por ter readquirido a saúde, não queria pagar a Deus, que me tinha feito esta graça, com semelhante moeda, antes mais do que nunca queria servi-lo onde Sua Divina Majestade e o Papa seu Vigário e a minha consciência e juramento me chamavam; e resolutamente me parti de Sua Majestade, dizendo que estava de partida e de ser livre em tudo de o poder fazer à minha custa; nem depois me foi ordenada em contrário coisa alguma, salvo quando, tendo-me caluniado os meus inimigos de que eu tinha dado o aviso a Nosso Senhor e a Mons. Il. mo meu de Farnese, me queria a um mesmo tempo ordenar que eu não partisse e fazer pôr-me as mãos nas costas, como Sua Majestade sabe; de cujos inconvenientes me libertei, partindo.

          Além disto digo que, se bem que eu tivesse tido tal obrigação e que Sua Majestade me tivesse mil vezes ordenado que eu não partisse, nem tivesse sido bispo mas verdadeiramente leigo seu súbdito em todas as coisas, eu não errava em nada partindo no modo e tempo em que me parti, sendo público que Sua Majestade, movido dos meus inimigos e com falsíssimas informações, me queria fazer prisioneiro, e, segundo fama pública e muitos avisos de pessoas gradas, para tal efeito estava já preparada uma Torre forte em Lisboa; e se mais não fosse, bastava-lhe querer, mediante a promessa de meu irmão e minha, sob contrapartida de perder o estado da nossa casa, que eu não saísse de Portugal sem sua licença, como disse a meu irmão de querer; depois da qual promessa, que claramente era contra a minha própria consciência e contra o meu juramento e liberdade eclesiástica, vendo eu que ficava infamado e preso à discrição dos meus inimigos e com manifesto perigo da vida, ou, querendo sobreviver, de fazer perder o estado a meu irmão, não podia, nem devia fazer senão o que fiz; e assim escrevi a Sua Majestade de Piacenza, a 5 de setembro de 1540.

          E Sua Majestade confessou que eu tinha tido razão, temendo aquilo que me fora dito, mas que não era verdadeiro; pois que, dado o meu bom ânimo, por qualquer outra razão não teria partido; e que eu quisesse voltar, agradeceu-mo por carta de 8 de Novembro de 1540, dizendo na dita carta que nunca tinha acreditado outra coisa de mim, por ser eu a pessoa que era e do sangue que era; nem ficava em Sua Majestade, nem em pessoa alguma do reino, mais opinião alguma de que eu tivesse errado, por me ter vindo secretamente como se viu, louvando todos os homens publicamente o que tinha feito; e Sua Alteza não só não mostrando mau ânimo para comigo, como fazendo tratar as minhas coisas melhor do que nunca.

          Diz o Decreto que eu me vim sem consignar os escritos e papéis de grave importância e segredo, que eu, como escrivão da puridade, tinha nas minhas mãos; seria de facto culpa se eu, tendo coisas de importância e que de alguma maneira pudessem prejudicar o serviço do Rei meu Senhor, as tivesse trazido e dado com elas algum passo mau – o que por si se vê ser em tudo falso e fora de razão, que eu o devesse, nem pudesse fazer; porque as coisas de Portugal não são como de muitos outros Estados, pendentes de razões novas ou litigiosas com outros Príncipes; nem o meu Rei tem por inimigo príncipe algum de potentado cristão, ao qual eu pudesse ir para desservi-lo: tanto é assim que, sabendo eu que se podia mandar atrás de mim, nunca me julguei seguro, nem fui, até ter chegado ao Estado da Igreja; nem a Roma quis mais vir porque não pensava em mais nada do que estar seguro; e pouco me podiam ajudar os papéis; pois que, se eu os tivesse tido quando me parti da corte, dizendo publicamente que não era para voltar tão depressa, me teriam sido pedidos, ou então na primeira carta que Sua Alteza me escreveu, chamando-me, fazendo menção de outras coisas de menor importância, não se teriam os meus inimigos esquecido disto; em qualquer destes casos e tempos, ainda que eu os tivesse tido e trazido comigo, dando-os, não tinha culpa alguma.

          Porém Sua Majestade, nem antes nem depois, nunca disse palavra sobre tal coisa, como quem sabia a verdade: de que nas minhas mãos não estavam nem papéis, nem carta alguma de importância, nem nunca estiveram. Porque os papéis e as cartas em Portugal tem-nas o secretário, mesmo fazendo eu as minutas das cartas de importância e instruções; feitas que estavam, as dava ao dito secretário e ele as escrevia, e as punha a limpo, e nem nunca mais voltavam à minha mão; e assim se fez sempre no meu tempo, como Sua Alteza sabe e é coisa pública para todos; e os livros das homenagens e juramentos que estavam na minha mão, sendo o uso, ao partir eu da corte, devia deixá-las a meu irmão ou a quem me parecesse. Eu, esta última vez, porque me partia com ânimo de não voltar e de vir ao concílio, fazendo-se, ou de estabelecer residência no meu bispado e viver como cristão e tranquilamente fazendo a minha obrigação, eu as fiz consignar a Sua Majestade por meu irmão; e Sua Majestade ordenou que fossem dadas a Pedro de Alcáçova, e assim se fez e estão na sua mão; o que é sinal claríssimo que ou Sua Majestade, crendo que eu estava para voltar, me queria fazer manifestíssima injúria, ou que ele sabia o meu ânimo, e que não era para voltar.

          Também se contém no Decreto que o Rei me escreveu e ordenou que voltasse, me mandou salvo-conduto e que eu lhe não quis obedecer nem voltar. A carta de Sua Majestade, feita por Pedro de Alcáçova em Lisboa no dia 29 de Julho de 1540, trouxe-ma um meu sobrinho e foi-me dada em Piacenza; e nela se incluiu o salvo-conduto, porque muitíssimo bem viram os meus inimigos que necessitava mandar-mo, sabendo a causa da minha partida e a razão justíssima que eu tinha tido; e na mesma carta disse-me Sua Alteza que, se alguém me tinha dito alguma coisa pela qual eu me receara, que deviam ser inimigos do meu serviço, da minha honra e vida; e que de qualquer modo que fosse, ele me mandava o dito salvo-conduto para poder voltar para ele com segurança e livre regressar na minha posta; e ao mesmo tempo, não vendo eu na carta nem satisfação alguma da minha honra, nem ordem alguma para poder voltar seguro – tendo de passar por terras do Imperador, a quem era dito pelo seu Embaixador, contra mim, que eu fazia obra com Nosso Senhor, e por tudo isso havia provisões para me reter sem dizer até quando, e ninguém me fazer serviço, tanto que o salvo-conduto nada me podia assegurar – respondi a Sua Majestade de Piacenza, dando plenamente conta da causa da partida, e do perigo do regresso, e prejuízo da minha honra e apreensões de vida; e que estava preparadíssimo para voltar e obedecer e estar e ir onde Sua Majestade ordenasse, pedindo-lhe porém que, onde eu fora infamado como homem que tinha errado, me fosse restituída a minha honra, e Sua Majestade desse ordem para que eu pudesse regressar seguro, não dele, de quem não temia, nem tinha temido nunca, mas dos meus inimigos. E a meu irmão escrevi que recordasse a Sua Alteza que um daqueles meus inimigos, em presença de Sua Alteza e sem reverência alguma, tinha dito contra mim, que um dia haveria de tornar-se Doñolla para esganar um bispo, e que o não tinha feito até agora não pelo respeito das excomunhões, mas de Sua Majestade, e que ainda não sabia o que faria; e que um outro me disse, falando-me do meu querer vir a Roma ao Concílio, que, se eu partisse, ele com as suas próprias mãos me mataria; e eram pessoas a quem eu não podia responder; mas eu não menos era obedientíssimo e preparadíssimo a voltar, estar e ir onde por Sua Majestade me fosse ordenado, desde que o pudesse fazer com honra e segurança da minha vida.

          A esta carta me foi respondido amorosamente com outra escrita por Pedro de Alcáçova e subscrita pelo Rei em Lisboa a 7 de Novembro de 1540, não negando as minhas razões, agradecendo-me a disposição e dizendo-me que me tinham dito mentiras, sem porém me mandar providência alguma, nem acerca do ponto de honra, nem da vida, de que eu me pudesse fiar razoavelmente.

          Fiz também a mesma justificação e escrevi aos Senhores Infantes, irmãos do meu Rei e Senhor, e todos me responderam amorosissimamente e humanissimamente por cartas, escritas em Lisboa a 10 de Novembro de 1540; e o Senhor Infante Dom Luís disse publicamente a meu irmão que nunca tinha tido maior prazer do que ouvir ler no conselho do Rei a minha carta, quanto bem eu me justificava, que o que eu dizia e pedia era justíssimo, que verdadeiramente eu merecia todos os bens e honras, que se não falasse mais de coisa alguma desagradável, e que se não atendesse a outra coisa que a satisfazer-me, para o que se ofereceu larguissimamente. O Rei igualmente disse a meu irmão que em todas as coisas me queria satisfazer, na honra e na vida, e castigar todos aqueles que tinham dito que eu tinha dado notícia da morte do Cardeal de Portugal, e banir certos outros de Viseu à minha disposição; e manter todos os privilégios e proeminências do ofício e fazer cessar em minha vida um litígio que pendia entre mim e o fisco sob a jurisdição de certos vassalos da igreja de Viseu; e que prometia tratar-me com todas as honras e receber-me naquele modo como tratava e recebia a si os mais caros e íntimos e favoritos servidores, das quais coisas não quis que bastasse a palavra mas deu uma provisão escrita pela mão do secretário Pedro de Alcáçova, subscrita pela sua mão real, cuja cópia tenho aqui, da mão do meu irmão, e o original está na sua mão para mais segurança e porque assim o quer o Rei; e Sua Alteza me escreveu à parte que, sendo a sua vontade tal, não necessitava de outra escritura, mas ele não menos a tinha feito de boa vontade, para que eu e quem quer que fosse pudesse ver quanto as suas obras eram melhores do que na escritura se continha; as quais coisas todas provavam claramente que eu não errei, partindo-me; nem trouxe escrituras, nem fiz coisa alguma contra o serviço nem contra a obediência do Rei.

          E a todas estas, que são quase as mesmas que se contêm na referida carta de chamada, à parte os papéis – que é invenção nova para dar cor ao decreto –, eu dei resposta duas vezes, que foram aceites e recebidas como boas por Sua Majestade, como consta das suas cartas e de meu irmão. A razão porque eu não regressei logo que tive a segunda carta do Rei meu Senhor, além de todas as outras referidas, foi que nem naquelas cartas nem noutras providências, nem nos razoamentos do Rei e dos Infantes seus irmãos, não era nunca feita menção alguma à vinda a Itália de um celerado chamado Capitão Correia, o qual trazia grande quantidade de dinheiro, e muitos soldados e homens civis estavam com ele e espias, e que por toda a parte me seguia, e diziam, ele e os seus, que vinham para matar-me, e ainda a mando de quem. E tendo este Correia saído de Portugal depois da partida do meu sobrinho, e dizendo ele ter estado no conselho do Rei e visto subscrever o salvo-conduto de Sua Majestade, eu vi claramente que, indo então, ia manifestamente para a morte; porque, quem tinha pelo Rei e pela Palavra do Rei tão pouco respeito e me queria fazer matar com tanta despesa e infâmia na Itália, muito mais facilmente o poderia fazer em Portugal, onde eu necessito de viver como bispo e não como soldado.

          E julguei que seria erro e quase traição a Sua Majestade não o avisar eu primeiro,  se bem que contra o conselho de muitos, e obedecer depois aos seus mandamentos, e assim fiz; e, para o fazer mais secretamente, mandei meu sobrinho sozinho a Sua Majestade com a notícia da chegada deste celerado e de todos os seus passos e palavras, e de que modo uma e outra vez o tinha tido em meu poder e nunca o quis ofender, antes dispus tudo eu mesmo para não ofender a Deus, nem o nome e a fama de Sua Majestade; e as mesmas coisas lhe fiz logo também saber por meio do bispo de S. Tomé, frade S. Domingos, a quem disse e fiz verificar em primeira mão todas estas coisas em Bolonha, onde então se achava secretamente aquele celerado com muitos soldados, crendo que eu me descuidasse, não sabendo que eu estava avisado da sua vinda e de todas as suas andanças. E Sua Alteza, tendo este aviso, não só não solicitou mais a minha ida, nem me teve por desobediente, como agora diz o Decreto, antes aprovou como era razoável a minha não ida; e prometeu providenciar logo em relação à minha segurança e honra, e que eu me contentaria, como da sua parte me escreveu meu irmão, e o mesmo me escreveu o Arcebispo de Lisboa.

          E tendo-me, não obstante todos estes perigos e dificuldades, deliberado mesmo a ir, fiz pedir salvo-conduto ou carta de passagem à Majestade do César por Dom Lourenço Manvallo, parecendo-me, pois que outra coisa não buscaria eu senão voltar, que me seria concedido por lá passar alegremente; e o Imperador respondeu não querer alterar coisa alguma daquelas que a pedido do Rei se tinham feito; e Dom Lourenço escreveu-me claramente que, sem nova ordem de Portugal, eu não esperasse carta de passagem, nem outra – o que é claríssimo argumento que os meus inimigos me tinham fechado a via do regresso, do mesmo modo que tinham tentado talhar-me o ir; e não querendo eles vir a nenhum particular de amizade, nem da minha segurança, e escrevendo-se de cá que a minha partida de Bolonha e ida a Veneza era porque Nosso Senhor me não consentia nas suas terras, de novo moveram a mente do Rei a não me responder; e a minha expedição para poder voltar demorou tanto, que Nosso Senhor, por clemência sua e benignidade, me declarou cardeal, o que se vê ter sido só esta a culpa que é a causa de todos estes escândalos; porque tendo eu estado ano e meio nestas práticas, sempre preparado para obedecer, escrevendo a Sua Majestade e recebendo cartas suas e servindo-o em todas aquelas coisas que ocorriam, sem nunca ser nomeado, nem ser tido como desobediente, nem homem que tivesse errado em coisa alguma, e antes sendo louvado pelo rei o meu conselho de o avisar destas coisas de crueldade, como acima disse, num único dia a nova do cardinalato me fez tornar desobediente, e fugitivo, e traidor, e violador do juramento, e roubador de papéis, e em suma digno de graves penas, como diz o Decreto – não vendo eu outra culpa que ter sido feito Cardeal pelo Papa Paulo III. O que é mesmo o maior argumento de não ser eu homem tal qual os meus inimigos me tinham pintado a Sua Majestade; e pois parece que o não voltar não era assim fora de razão em tudo, sendo tantas as causas para desconfiar antes de ter por certo o perigo voltando, nem havendo homem algum prudente e amigo na Itália ou em Portugal que mo não desaconselhasse; e Mons. R.mo Santiquatro disse-me, a primeira vez que fui a visitar Sua Senhoria R.ma, que, dizendo-lhe Nosso Senhor que pensava que eu tivesse muito bem justificadas as minhas coisas e que o Rei me tinha escrito cartas afetuosas, ele tinha respondido a Sua Santidade que todas aquelas boas palavras tinham sido com o fim de enganar-me e ter-me nas mãos; mas que eu tinha sido mais astuto que o Rei.

          Estas foram as suas palavras formais que me disse ter dito a Sua Santidade – tal que, com muita razão e com justíssima causa, desconfiava eu das obras más que via, e talvez que grandemente me perseguiam, e insídias dos meus inimigos, que estavam à minha volta, dizendo o próprio Protetor de Sua Majestade, o qual sabia os seus segredos e que das minhas coisas estava avisadíssimo, que isto que se me escrevia era para me enganar e ter-me nas mãos; o que, se bem que eu soubesse e saiba hoje em dia que não podia proceder da mansíssima e religiosíssima mente de Sua Majestade, nem por isso devia temer menos, antes muito mais, por ser obra dos meus inimigos sem piedade alguma, acompanhadas e defendidas pela autoridade de Sua Majestade; juntando a estas muitas outras causas de temer, porque algumas outras providências que o Rei meu Senhor tinha assinado concernentes à minha segurança e que estavam na mão de meu irmão, não tinham querido que me fossem mandadas, dizendo ser assim melhor; e estando também entre essas causas um Capítulo do litígio dos vassalos e jurisdições de Viseu acima referido, já que os meus inimigos secretissimamente, no dito litígio tinham feito proceder e sentenciar, contra toda a forma de razão, sem exemplo algum e contra a promessa do Rei, contra a Igreja.

          Segue depois o Decreto que, pela culpa de ter saído e não ter querido voltar, ele, como meu Rei e Senhor, me priva do ofício – e não sabia quem de cá mandou a minuta, ou quem a deu a subscrever a Sua Majestade não lhe quis dizer, que eu tinha muito antes a ele renunciado. O ofício, uma vez esclarecido lá, e cá todo um ano, não existia mais para voltar ao reino; assim que sucede privar-me do que por minha própria vontade tinha já deixado há tanto tempo. Nem também vale dizer que me priva de jurisdições, receitas, pensões, salários, provisões, honras, graças e outras coisas semelhantes que ele me tinha concedido; não tendo eu de Sua Majestade, como acima disse, coisa na qual, sem incorrer em censuras gravíssimas, pudesse pôr mão. E sendo certo que eu tenho um verdadeiro superior, o Papa, porque assim sei que agrado aos católicos e bons príncipes como é Sua Majestade, e o mesmo podem dizer os prelados dos seus reinos. Mas vê-se bem que se puseram muitas coisas, não para privar-me delas, não as tendo eu, mas para encher os ouvidos do vulgo com aquelas palavras, e para que quem leia veja que me foram dadas muitas coisas e me seja mais vergonha o terem-me sido tiradas, e eu pelos ignorantes julgado mais digno de culpa, tendo recebido tantos benefícios e ter-me partido.

          O fazer-me riscar dos seus livros, Sua Majestade pode fazer em certo modo como Rei e Senhor; e se bem que eu esteja inscrito noutros livros por graça de Deus e clemência e benignidade de Nosso Senhor, do que muito me contento, nem por isso se impedirá nunca que eu me não chame seu, tenha em grande honra o ser seu,  e por grandíssimo mal estar fora da sua graça, e que de qualquer modo por que seja tratado por Sua Majestade, eu não deixarei de ser sempre aquele seu verdadeiro e fiel servidor e criado que sempre fui, nem nunca deixarei de o servir com todas as minhas forças quanto puder.

          Depois a parte do Decreto contra os meus criados e servidores e ministros e contra quem me acompanhar ou servir ou receber as minhas cartas ou mandar dinheiro ou negociar as minhas coisas, é tanto fora de toda a humanidade e tão alheio da cristã e justíssima mente do Rei e tão de direito contra a liberdade eclesiástica e contra os sagrados cânones e concílio, e expressamente contra a Bula In Coena Domini, que, ainda que eu não fosse Cardeal, como por graça de Deus e mercê do Papa Paulo o sou, não se pode, nem se deve crer nunca que tenha saído de Sua Alteza; porque, como santo e religioso Rei que é, temente a Deus e obedientíssimo filho da Sé Apostólica e de Nosso Senhor, sendo informado das excomunhões gravíssimas em que se incorre, consentindo, ou aconselhando ou fazendo semelhantes decretos, nunca o teria feito; tanto mais que é fazer coisa expressamente contra Deus e si mesmo chamando-me bispo no Decreto.

          E de que modo posso eu fazer o ofício de bispo e não providenciar nas coisas necessárias e obrigatórias da Igreja e das minhas Abadias e outros benefícios, não podendo os meus servirem-me, nem avisar-me, nem serem instruídos daquilo que se há de fazer durante o dia? De que modo se podem fornecer as fábricas começadas da Igreja? Ou executar as outras obrigações episcopais, sendo eu cardeal ao serviço da Sé Apostólica e de Nosso Senhor? Ou sustentar cá a dignidade do cardinalato, se ninguém me pode servir, nem presente, nem ausente? Nem escrever-me, nem receber as minhas cartas, nem tocar no meu dinheiro?

          Sem todas estas coisas, a minha Igreja e benefícios viriam a estar em muito pior condição vivendo eu, do que se eu estivesse morto! Ainda que, por ter saído do Reino e não querer voltar, tivesse, por culpa minha, merecido a pena da desnaturalização, e que isto se pudesse fazer sem as excomunhões e censuras gravíssimas, como pode quem é desnaturado ser de pior condição que um Turco, a quem não é proibido escrever e o escreverem-lhe?! E a cautela de parecer que se não tocam nas receitas, tirando-as por esta via indireta, está muito descoberta, e os homens bem simples não se podem nisto enganar, quanto mais Deus que sabe e vê todas as coisas.

          Que dizer da última parte do Decreto que me tira o poder testar, de dar e ser-me dado e de suceder? Tudo contra as leis divinas e humanas, e inéditas entre os Príncipe bárbaros, e lá onde não se sabe que coisa seja humanidade! Aos inimigos infiéis escreve quem quer, e dá quem quer; e antes, sendo os exércitos inimigos um contra o outro, não se proibiu nunca escrever, falar e mandar embaixadas; mas tudo me é proibido a mim e aos meus. E onde se viu e ouviu nunca em Portugal e noutra parte que não seja lícito em caso algum ao irmão socorrer de pão o irmão necessitado? A que forasteiro, se Deus o ajuda fora de sua casa e que tenha com quê, foi tirado nunca o poder dotar as suas irmãs e sobrinhos que ficam em casa, e dar aos parentes pobres e fazer muitas obras semelhantes, o que a mim, sendo Cardeal, não é lícito por este Decreto? Nem ninguém poder gozar a minha liberalidade? Nem as esmolas e outras obras pias, que mesmo pensá-lo parece pecado gravíssimo, pois por este Decreto me são expressamente proibidas; por ele não posso dotar, nem doar, nem pessoa alguma manejar as minhas coisas, nem outros aceitar o que eu lhes der! No que se vê claramente a grandíssima malignidade dos meus inimigos e o artifício pelo qual conduzem a boa mente do meu Rei e Senhor a obras tão contrárias: pois que, não achando causa nenhuma digna em mim, e vendo que se não estende a jurisdição secular a fazer contra mim aquilo que desejam para satisfazer ao ódio que me têm, sem minha culpa e só por ser eu homem livre e de ânimo eclesiástico, se voltaram por esta via indireta contra os meus servidores, ministros e amigos; com a qual me vêm a tirar mais expressamente e mais cruelmente o que é meu e ofender mais claramente a Deus e a dignidade na qual Deus e Nosso Senhor me puseram, que se com mão armada fossem a saquear as minhas coisas.

          Não costumando nunca o Papa excomungar alguém de forma tal que lhe seja tirado em tudo o viver e que ao menos não tenha algum comércio entre os homens, eles fazem que o Rei, ótimo e religiosíssimo, excomungue publicamente um Cardeal e lhe interdite o poder fazer e receber bem, tomando eles e fazendo tomar a Sua Majestade sobre si as mais graves censuras e mais espantosas excomunhões e anatematizações que haja na Igreja de Deus, das quais por via alguma não possa ser absolvido nunca, salvo pelo Papa e no artigo de morte, se antes se não revoga o que se fez e se dá caução de o não fazer mais. E para que o seu ânimo se veja mais claro, puseram, no fim do Decreto, a ordem para que seja publicado nomeadamente em Viseu, onde não há mais oficial algum, nem ministro que possa fazer o seu ofício; que até as tochas e candeias da igreja que têm de arder nas missas e diante do Santíssimo Sacramento não se acha mais quem o queira fazer, por duvidoso; e os que têm necessidade de me escrever coisas e casos de consciência importantíssimos, que outros que não eu os não possa remediar por ser ordinário, são privados de remédio; e eu venho a ser com efeito privado do ofício de prelado, estando privado dos meios e modos de o ser.

          Estas são as coisas que me pareceu conveniente tocar para que ninguém possa pensar, vendo a forma do decreto e a execução assim cruel e escandalosa, que tenha havido causa alguma que mereça isto. Porque eu parti por justíssimo medo e, para não entrar ou andar em poder dos meus inimigos capitais, fiquei, como antes tinha crido poder fazê-lo sem perigo. Dei tal conta de mim ao meu Rei e Senhor que por ele e por todos fui julgado sem culpa. Não voltei porque nunca me foi assegurada a vida. Tive salvo-conduto, contra a forma do qual fui perseguido por muitos que me queriam matar. Solicitei quanto pude o meu regresso; e sem querer mais que a satisfação da honra e estar seguro da vida, não pude nunca vencer, nem com rogos, nem com obediência e fidelidade, nem por meio de Religiosos que utilizei, a força dos meus inimigos, que levaram tão longe a resolução do meu Rei e Senhor; que, antes de ser publicado Cardeal, e ainda agora, me ofereci para todos os seus serviços, e a voltar obedientíssimo e a servir onde me fosse ordenado, com boa licença de Nosso Senhor; e não só não foram aceites os meus oferecimentos, mas nem mesmo me responderam a mim e aos meus; e não faltando nunca eu em coisa alguma contra a forma do mesmo salvo-conduto Real que eu tenho na mão, fez-se o referido Decreto; do qual não vejo que haja parte nem palavra alguma que se possa confirmar, salvo o ser o meu nome Dom Miguel, porque me chama bispo sendo eu cardeal. E que eu errei, partindo-me – tendo fugido à prisão. Diz que eu não quis voltar – chamando-me à morte. Os papéis não os tive nunca; e tinha juramento que me libertava de todas as outras obrigações.

          De modo que não me resta nada mais que dizer, salvo que peço à Majestade Divina que se digne reduzir os meus inimigos ao caminho da paz, e que me perdoem o mal que lhes tenha feito, como eu tenho de todo o coração perdoado e lhes perdoo. Que da Majestade do Rei e meu Senhor claro e certo estou que não recebi mal nenhum diretamente, nem estou para receber, sendo Rei justo, cheio de bondade e religião, e procedendo todas as coisas passadas por outros meus pecados, que merecem esta minha penitência, e todas ou por falsas informações feitas pelos meus inimigos, ou sem o seu conhecimento.