D. MIGUEL DA SILVA, O HOMEM E O HUMANISTA2023-12-27T17:16:22+00:00

D. MIGUEL DA SILVA,

O HOMEM E O HUMANISTA

É a partir de uma nota do humanista italiano Angelo Colocci sobre um «libro di portughesi» que um tal «da Ribera» teria deixado em Roma para lhe ser entregue, que se poderá estabelecer uma relação entre D. Miguel da Silva e os cancioneiros medievais galego-portugueses, já que a figura referida por Colocci tem sido identificada como António Ribeiro, personagem muito próxima do Bispo de Viseu.

Propusemo-nos, neste projeto, investigar mais a fundo esta matéria, e encontrar, em arquivos nacionais e italianos, alguma prova mais concreta que pudesse validar esta hipótese, a qual, sendo plausível, carece de ser documentada. Infelizmente, sobre D. Miguel da Silva e os Cancioneiros, nada mais conseguimos apurar, pelo menos até agora. Já sobre António Ribeiro, a nossa investigação recolheu efetivamente dados novos, tão interessantes quanto inesperados: pela análise das assinaturas de algumas cartas guardadas nos arquivos da Torre do Tombo (como abaixo se explicará melhor), pudemos confirmar que, com esse mesmo nome, existiram, à época, duas pessoas diferentes, ambas colaboradores próximos de D. Miguel. 

          Grande figura do Renascimento português, largos anos embaixador de D. Manuel em Roma e posteriormente, a partir da sua fuga de Portugal em 1540, condenado e perseguido por D. João III, D. Miguel da Silva, bispo de Viseu e cardeal romano, é uma figura ímpar da cultura portuguesa de Quinhentos. Este projeto tinha também, como um dos seus objetivos, estudar esta grande figura em si.
A sua vida, a sua obra e também o seu hipotético mas plausível papel na preservação dos cancioneiros medievais é, pois, a matéria aqui apresentada.

I.

          D. Miguel da Silva – um percurso de vida

          Quem foi D. Miguel da Silva, bispo de Viseu? Em anos recentes, dois excelentes estudos procuraram desenhar o perfil de uma das mais destacadas, mas também mais esquecidas, personalidades do Renascimento português: o primeiro, e o que decerto mais contribuiu para chamar de novo a atenção para o homem cuja memória póstuma D. João III pretendeu erradicar definitivamente dos arquivos e da história do reino, é o cuidadoso e detalhado trabalho que, em finais dos anos 1980, Sylvie Deswarte lhe dedicou, com destaque para o seu notável percurso italiano (Il Perfetto Cortegiano. D. Miguel da Silva [1]).

A feroz e continuada perseguição que o monarca português lhe moveu, sobretudo a partir da sua fuga para Roma em 1540, e os eventuais motivos políticos que explicarão este «ódio velho» e estranhamente tenaz, foram mais tarde analisados por Ana Isabel Buescu (2010) [2], num estudo que, de certa forma, completa o perfil do notável humanista antes traçado por Deswarte, desta feita acrescentando-lhe o painel que diz respeito ao contexto político português que também foi o seu. Uma vez que ambos estes trabalhos traçaram já os grandes linhas do seu percurso biográfico, segui-los-emos aqui de forma muito breve, acrescentando-lhes, no entanto, alguns novos dados que nos foi possível recolher.

          Nascido em Évora, em 1480, no seio de uma família da grande aristocracia de corte (o seu pai é D. Diogo da Silva de Meneses, que foi aio e vedor da fazenda do Duque de Beja, futuro D. Manuel I, que o nomeará, aquando da sua subida ao trono em 1498, 1º conde de Portalegre, e a sua mãe, D. Maria de Ayala, neta dos senhores das Canárias), D. Miguel, como último filho varão do casal, envereda pela carreira eclesiástica. Dotado de singulares dotes intelectuais, segue também uma brilhante carreira universitária, que o leva da Universidade de Lisboa às universidades de Paris e de Siena, onde completa, em 1513 os seus estudos de teologia e humanidades, adquirindo uma sólida cultura e um profundo conhecimento das línguas clássicas. É exatamente em Siena que o jovem D. Miguel estabelece os laços que manterá toda a vida com diversas figuras dos meios intelectuais e políticos da Itália renascentista, como é o caso dos Tolomei e eventualmente já dos Medici, como crê Deswarte [3]. Datem ou não dos anos estudantis de Siena, o certo é que estes laços de D. Miguel com os Medici são já uma realidade em inícios de 1514, quando o papa Leão X (Giovanni di Lorenzo de Medici, eleito em 1513) o cumula de diversos benefícios, chegando mesmo a colocar a hipótese, logo em 1516, de o nomear cardeal [4]. Mas é sobretudo com Júlio de Medici, sobrinho de Lourenço, o Magnífico, e futuro papa Clemente VII (1523-1534), que as suas relações são mais próximas, ou, como escreve Deswarte «di grande amicizia e di stima reciproca». Prova disso é, por exemplo, a carta que D. Miguel escreve ao rei português pouco depois desta eleição (1523), e onde, após fazer o elogio do novo Papa «o mais prudente e o mais justiçoso homem que duzentos anos a esta parte se viu assentado nesta cadeira», relata que foi ele o primeiro a ser chamado pelo novo Pontífice logo após o conclave, confessando mesmo que está escrevendo a carta «dentro das cortinas do seu leito». Como conclui Sylvie Deswarte «D. Miguel da Silva appare dunque come il grande favorito di Clemente VII», que lhe concederá belos apartamentos no Vaticano e que gostava de o visitar nos jardins do belo palácio que alugou sobre o rio Tevere, próximo da Villa Farnesina.  É, pois, nesta Roma política e intelectual de grande peso e prestígio que D. Miguel circula e ocupa um lugar de relevo, estabelecendo relações com grandes intelectuais, como Lattanzio Tolomei, Giuvanni Rucelai (também sobrinho de Lourenço, o Magnífico) ou Angelo Colocci, e com artistas como Tiziano, Rafael, Miguel Angelo ou Leonardo da Vinci ou escritores como Piero Bembo ou Baldarasse Castiglione. A D. Miguel dedicam muitos destes intelectuais poemas e livros, mas é a dedicatória que lhe faz Castiglione do seu célebre Libro del Cortegiano (1527) que representa, como afirma Deswarte, a melhor prova de prestígio e da influência que o bispo de Viseu tinha alcançado por estes anos.

          Do ponto de vista da sua carreira, desde o início de 1515 que D. Miguel é embaixador junto da Cúria romana, nomeado pelo rei D. Manuel. Nos dez anos que passou nestas funções (até 1525, ano em que D. João III o obriga a regressar), desenvolveu intensa atividade diplomática, encarregando-o D. Manuel de «inúmeras e sensíveis matérias e questões que D. Miguel tratou aparentemente sempre a contento» do monarca, como escreve Ana Isabel Buescu, isto numa Europa agitada por acontecimentos e figuras de grande alcance histórico, como Lutero, Henrique VIII, Carlos V, Francisco I ou ainda Soleimão, o imperador da «Santa Porta». Após a morte de D. Manuel (1521), o rei D. João III manteve-o no cargo. Mas «algo mudava», como afirma ainda Buescu, «lastimando-se D. Miguel reiteradamente, na correspondência enviada, da falta de instruções por parte do novo monarca». No breve pontificado de Adriano VI (1522-1523), e numa Itália assolada por tensões políticas e, sobretudo, pela peste em Roma, D. Miguel chega a pedir por mais de uma vez para regressar a Portugal. Mas o ambiente na cidade e, visivelmente, o seu estado de espírito, mudam de forma significativa com a ascensão do seu amigo Júlio de Medici à dignidade pontifícia, como Clemente VII (1523-1534), numa eleição difícil, mas que D. Miguel se compraz em descrever com detalhe (e com não contido entusiasmo), em pelo menos duas cartas ao rei (datadas de 18 novembro e 22 de dezembro de 1523) [5].

          Continuando a ocupar-se, pois, dos negócios do reino junto da Santa Sé, é ainda ele quem trata das necessárias dispensas para o casamento do novo rei com D. Catarina de Áustria, um processo iniciado em 1524. Ana Isabel Buescu considera que datará talvez dessa época a sua entrada para o Conselho Régio. Seja como for, o certo é que, no início de julho de 1525, como se disse, D. Miguel recebe ordem expressa de regressar a Portugal, ordem que cumpriu a «com inequívoca relutância».

          A acompanhá-lo traz, no entanto, não só a fama do seu prestígio e do favor que tem junto do Papa, mas um muito concreto Breve de Clemente VII dirigido a D. João III, repleto de elogios ao seu amigo e com a recomendação expressa de que os seus conselhos fossem ouvidos (e de que as duas primeiras posições que vagassem lhe fossem atribuídas). Retomando um cargo que tinha sido o de seu pai (no caso, em relação a D. Manuel), é então nomeado escrivão da puridade do monarca, e, logo no ano seguinte, bispo de Viseu, neste caso, numa eleição que parece visivelmente resultar mais da pressão do Pontífice do que do empenhamento do rei (que, em 1522, tinha procurado em vão que o bispado fosse atribuído ao seu irmão D. Henrique [6]). Para além do estatuto que tal cargo pressupunha, tratava-se de mais um significativo benefício que se vinha juntar aos muitos outros que já detinha ou com que foi sendo agraciado pelos vários papas desde a sua chegada a Roma, o último dos quais o do importante Mosteiro de Santo Tirso [7].

          No seu regresso a Portugal, D. Miguel irá, pois, utilizar uma parte da sua enorme fortuna no desenvolvimento de um vasto programa urbanístico e cultural «à maneira italiana», ideado muito visivelmente já em Roma, uma vez que traz consigo o arquiteto Francesco de Cremona (que tinha trabalhado com Rafael na fábrica do Vaticano), a quem incumbe de chefiar um vasto conjunto de notáveis obras arquitetónicas, com destaque para a igreja de S. João Baptista e a capela-farol de S. Miguel-o-Anjo, na Foz do Douro (pertencentes à comenda de Santo Tirso) ou, em Viseu, a renovação da Sé catedral, com a construção do novo claustro, da varanda, do coro alto e do cadeiral, bem como a renovação do paço e dos jardins do Fontelo, segundo o modelo da villa italiana, rodeada de lagos, fontes e árvores limitadas por redes invisíveis onde milhares de pássaros pareciam voar em liberdade [8]. Às oficinas de Vasco Fernandes, o célebre pintor Grão Vasco, encomenda também D. Miguel uma série de pinturas, numa das quais se fez eventualmente retratar (Cristo na casa de Marta e Maria, c. 1530, Museu Grão Vasco). Das suas relações literárias portuguesas, também interessantes, falaremos um pouco mais à frente. Enfim, nos seus anos portugueses, como resume Rafael Moreira, D. Miguel da Silva «foi um verdadeiro mecenas, à altura dos cardeais Amboise e Mendoza em França e Espanha, patrono esclarecido e generoso que colocou a sua fortuna […] ao serviço da renovação das artes no sentido renascentista, em pleno apogeu do gosto manuelino» [9].

          Politicamente, são anos durante os quais a sua posição na corte joanina, ultrapassando intrigas e mesmo alguma distância por parte do rei, se mantém relativamente estável. Mas por volta de 1538, as suas relações com o monarca e com o círculo próximo de cortesãos que o rodeiam parecem deteriorar-se significativamente. Sendo decerto múltiplas as razões para a sua queda no favor real, tanto políticas (como o seu pouco entusiasmo com o estabelecimento da Inquisição em Portugal e o seu manifesto apoio aos cristãos-novos), como práticas (a mais grave sendo o seu papel na nomeação, em abril de 1540, de Alexandre Farnese, seu afilhado e neto de Paulo III, para a Abadia de Alcobaça, em detrimento, novamente, do infante D. Henrique), o certo é que a situação agudiza-se em torno da questão do Concílio de Trento, que Paulo III convoca logo em 1536 [10]: nos três anos seguintes, ao desejo de D. Miguel de participar no Concílio, e mesmo ao breve papal, de maio de 1538, com ameaças sérias do pontífice caso não comparecesse [11], o monarca opõe a mais intransigente oposição, recusando-se a conceder-lhe a necessária autorização, insistentemente solicitada. Impedido de partir e dispondo de informações fidedignas de que a sua prisão por desobediência estava iminente, o Bispo de Viseu decide-se pela fuga. A 22 de julho de 1540, parte, pois, de Viseu para Roma, acompanhado por dois fieis servidores visienses (Antonio Godinho e o arcediago Manuel da Paz), numa viagem que seria sem regresso. Acrescente-se que, nessa altura, decerto já saberia que, em dezembro de 1539, num consistório secreto, Paulo III o tinha nomeado cardeal, embora numa nomeação in petto (ou seja, também ela mantida secreta).

          Era esta, diga-se, uma nomeação previsível (previsibilidade que poderá explicar a feroz oposição do rei à sua partida, na tentativa de colocar obstáculos a esse desfecho). Como era do conhecimento público, a questão do cardinalato para D. Miguel já várias vezes tinha estado em cima da mesa da Santa Sé, e a primeira logo em 1516, com Leão X, como referimos. À época, D. Miguel tinha recusado a promoção «por entender que a púrpura deveria enfeitar, como enfeitou, um Infante da Casa de Portugal, o Infante Dom Afonso», como escreve José de Castro [12]. É também José de Castro quem relaciona a súbita chamada ao reino de D. Miguel, em 1525, com a real possibilidade de a eleição do papa Clemente VII significar a reabertura do processo e, dessa feita, a sua efetiva nomeação como cardeal. Se o seu afastamento de Roma a adia por alguns anos, essa nomeação acaba por acontecer, pois, em finais de 1539.

          A bem-sucedida fuga de D. Miguel para Itália desencadeia, como seria de esperar, a fúria do monarca. Nos meses seguintes, e servindo-me novamente da viva narração de José de Castro, «não se contam os processos de que Dom João III se valeu para fazer regressar a Portugal o bispo de Viseu. Ele são emissários com cartas blandiciosas, ele são pessoas compradas para o prender ou assassinar, ele são representantes diplomáticos que agem junto dos príncipes, ele é o embaixador Cristóvão de Sousa que vai de Roma a Ferrara e a Veneza para o convencer ao regresso a Portugal, ele é o próprio Dom João III que escreve ao Papa sobre a saída de Dom Miguel da Silva. A tudo e a todos D. Miguel resistiu ficando em Veneza durante o ano de 1541 [13]; a tudo e a todos resistiu o Santo Padre até que em 2 de Dezembro, o publicou Cardeal (…)». Foi exatamente este anúncio público da nomeação a gota de água que conduziu ao corte oficial de relações entre o monarca e o prelado: por carta régia datada de 23 de janeiro de 1542, o bispo de Viseu é então desnaturalizado e banido definitivamente do reino e de todas as suas dignidades e benefícios. Trata-se de um texto duríssimo que visava não apenas D. Miguel, acusado de traição e de toda uma série de crimes graves (incluindo de costumes, como o de sodomia), mas ainda qualquer pessoa que eventualmente o contactasse, familiares incluídos. O seu sobrinho D. Jorge da Silva foi a vítima mais visível da fúria do monarca: por ter tido relações epistolares com o tio, foi preso na Torre de Belém, acabando logo depois desterrado, primeiro para Mazagão e depois para Arzila.

          O decreto real não fica, no entanto, sem resposta: numa longa e notável carta, enviada ao rei pouco tempo depois, D. Miguel, faz questão de responder a todas e a cada uma das acusações que lhe são feitas, argumentando quanto à falsidade das mesmas, mas sempre alegando, e logo desde o início, que «o seu mal procede das sinistras e inimigas informações, e não na ótima natureza do Rei e da sua mente» [14]. Escrita, poderemos supor, sobretudo como um testemunho para o futuro, os efeitos desta carta foram nulos no ânimo do monarca, cujo ódio se manteve inalterável, materializando-se numa estratégia de perseguição sem tréguas, tão continuada como infrutífera, e isto até à morte do Cardeal Viseu, ocorrida, de causas naturais, em 1556.

          A acreditarmos em documentos portugueses da época, nomeadamente nos relatos dos embaixadores de Portugal em Roma, esta segunda vida de D. Miguel em Itália teria sido um rol de misérias e humilhações, motivadas por uma precária situação económica e por dificuldades de toda a ordem, incluindo a perda de consideração e de estatuto. Na verdade, a situação real do cardeal Viseu parece não ter sofrido grandes alterações nestes anos de exílio, nem no que toca ao seu prestígio nos meios intelectuais e eclesiásticos romanos (que parece ter-se mantido intacto, como veremos), nem mesmo no que toca â sua situação económica. Neste último aspeto, e se é certo que D. Miguel se viu privado de todos os seus (elevados) rendimentos no reino, Paulo III não tardou em compensá-lo com vários outros, e o mesmo fizeram os seus sucessores Júlio III, Marcelo II e Paulo IV [15]. O mero facto de, em 1548, ter voltado a alugar o belo palácio de S. Giacomo de Settimiano, à beira do Tibre, que já tinha habitado em 1524, continuando a melhorá-lo e a redecorá-lo, parece a prova cabal de que os enviados portugueses que relatam a sua “queda em desgraça” terão optado por dizer ao rei sobretudo o que este quereria ouvir, num relato fantasioso e assaz distante da realidade. Encarregado de importantes missões diplomáticas pela Santa Sé, como a que, em 1542, o levou até Barcelona, junto do imperador Carlos V, o seu título cardinalício foi também mudando de sede (de importância crescente), acabando os seus dias como titular de Santa Maria de Trastevere, a mais rica diocese de Roma. De resto, desde Clemente VII, que tinha considerado D. Miguel da Silva «digno de se assentar na cadeira de S. Pedro» [16], e, sobretudo, desde o seu regresso a Roma, que o Cardeal Viseu foi sempre um dos fortes candidatos a cada nova eleição papal, considerando mesmo José de Castro que apenas a tenaz oposição da coroa portuguesa impediu, de facto, a sua subida à dignidade pontifícia [17].  Faleceu em 5 de junho de 1556, como se disse, tendo sido sepultado na sua igreja de Santa Maria de Transtevere. Do mausoléu «elevado e primoroso», nas palavras de Maximiano de Aragão [18], onde teria sido sepultado, não há hoje vestígios. Eventualmente destruído, como muitos outros, aquando das obras de renovação da igreja, mandadas executar pelo Cardeal Marco Sittico Altemps, em 1580-1595, tudo o que dele resta, como refere Mons. José de Castro (que longo tempo o procurou em vão), é, no pórtico da Basílica, ao lado esquerdo, uma «lápide de mármore branco que tem impertigado o leão heráldico dos Silvas, tendo na base três letras maiúsculas: M. C. S. Miguel, Cardeal Silva». Maximiano de Aragão, no entanto, garante que no referido mausoléu se lia o seguinte epitáfio em português [19]:

          Ao grão Miguel encerra o marmol duro
          Corpo mortal da Terra (vão tesouro)
          Que um tempo cofre foi do presado ouro
          Que orna o assento etéreo limpo e puro.

II.

          Pistas e hipóteses de investigação

          A investigação sobre D. Miguel da Silva e sobre o seu papel na cultura portuguesa de quinhentos é ainda hoje grandemente dificultada pelas consequências práticas da carta régia de janeiro de 1542, nos termos da qual não só o Bispo de Viseu perdia a nacionalidade portuguesa, como qualquer contacto com ele ou qualquer referência ao seu nome em território português poderia significar um crime de traição. Apagado de todos os registos oficiais, o nome de D. Miguel passou também a ser, desde então, cuidadosamente evitado nos registos públicos, mesmo por aqueles que lhe eram mais próximos ou cuja carreira ele tinha incentivado e protegido. Sylvie Deswarte explica assim, por exemplo, o absoluto silêncio do pintor Francisco de Holanda em relação àquele que terá sido o seu grande protetor em Itália [20]. O caso de Francisco Sá de Miranda, de que adiante falaremos, poderá constituir um outro exemplo, este talvez ainda mais flagrante. Também Garcia de Resende, o grande cronistas social desses anos, na sua Miscelânea (1554), se limita a uma brevíssima referência ao bispo de Viseu – e não no texto, mas na nota lateral à estrofe 159 (onde se ocupa dos notáveis de outras eras, já falecidos ou ausentes da corte, e cujos feitos retoma nas estrofes seguintes) –, acabando por concluir mais adiante (estrofe 170): «Vimos outros que podera/ escrever o que teem feito/ de que louvores dera/ muito grandes se quisera/ mas chamarão-me sospecto» [21]. São estas, pois, as circunstâncias que condicionam, de forma significativa, qualquer investigação sobre a figura e as atividades do Cardeal Viseu, e que deveremos sempre ter presentes quando se trata de avaliar o seu papel na matéria que desencadeou a nossa investigação: a transmissão dos cancioneiros medievais galego-portugueses.

         

          1. Uma teia de relações

          Analisando o largo círculo de amizades e contactos de D. Miguel da Silva nos meios intelectuais e artísticos italianos, Sylvie Deswarte faz larga referência às suas relações com Angelo Colocci (1467-1549), o humanista a quem devemos as duas cópias que nos fizeram chegar a parte mais substancial da Lírica medieval galego-portuguesa, cópias que hoje conhecemos como Cancioneiro da Biblioteca Nacional e Cancioneiro da Vaticana. E embora avance mesmo a breve sugestão de que terá sido exatamente D. Miguel da Silva o fornecedor do manuscrito original que Colocci mandou copiar, o certo é que esta sugestão não tem merecido, da parte dos especialistas da lírica medieval, o desenvolvimento que seguramente merece. É, pois, este pouco conhecido papel que o Bispo de Viseu terá desempenhado na preservação e transmissão da Lírica trovadoresca medieval a matéria que trataremos em seguida. Trata-se apenas, devemos salientar, de uma abordagem preliminar em jeito de levantamento prévio do que tem sido possível apurar sobre este assunto.

          1.1. Uma nota de Angelo Colocci

          Por volta dos anos 1525-1528, Angelo Colocci, então notário da Câmara Apostólica da Santa Sé, escreve a seguinte nota nas linhas finais de uma página em que estaria a trabalhar ou que teria à mão na sua mesa de trabalho: «Messer Octaviano di messer Lactantio ha il libro di portughesi; quel da Ribera l’ha lassato». Descoberta na década de 1870 por Ernesto Monacci [22] num fólio que se encontra numa das muitas Miscelâneas coloccianas atualmente guardadas na Biblioteca Vaticana (Vat. lat. 4817, fl. 204v), a nota é manifestamente um apontamento pessoal, uma entre as muitas notas que se podem encontrar em livros e manuscritos que lhe pertenceram [23], no caso, uma espécie de lembrete (ou memo, diríamos hoje) relativa a um assunto – o libro di portughesi – a que teria de dar posterior seguimento.

Colocci, Vat.Lat. 4817, fol. 204v

          Já aquando da sua publicação oitocentista, Monacci perguntava: «Era quello forse il libri di cui presentemente deploriamo la perdita?» A importância desta nota no que toca à complexa questão da transmissão escrita das cantigas galego-portuguesas também não passou desapercebida a D. Carolina Michaëlis, que dela fala no seu enciclopédico segundo volume do Cancioneiro da Ajuda. Fazendo sua a pergunta já colocada por Monacci (mas avançando claramente a hipótese de poder ser esse livro perdido o «manuscrito-pae», a partir do qual foram copiados os apógrafos italianos), D. Carolina dedica algumas linhas suplementares à questão, elencando «os nomes de alguns viajantes portugueses que (…) bem poderiam ter inspeccionado o Libro di Portughesi», entre os quais não deixa de referir o Bispo de Viseu, D. Miguel da Silva. Mas, talvez por conhecer a nota apenas na errada transcrição de Monacci (que lera Messer Octaviano di messer barbarino...), D. Carolina acaba por concluir que a ausência de dados que comprovem as relações entre Colocci e qualquer um destes viajantes ilustres que menciona não lhe permite ir muito mais além.

          De facto, foi só em 1976 que a investigadora Elsa Gonçalves, tendo ocasião de ler diretamente a referida nota no âmbito do trabalho que desenvolvia sobre o índice de «Autori portughese» do mesmo Colocci [24], verificou que «onde Monacci lera barbarino Colocci havia, afinal, escrito lactantio». E acrescenta, no curto mas importante artigo onde anos mais tarde retoma o assunto [25], que, se o nome messer Barbarino «era personagem desconhecida, o nome Lactantio, pelo contrário, podia acordar reminiscências na memória de quem, por um lado havia lido Sá de Miranda e Francisco de Holanda, e por outro tinha a mente voltada para aquela elite intelectual ‘romana’ que, depois da morte de Pomponio Leto, se reunia à volta do humanista iesino» (i.e., Colocci).

          A leitura correta da nota, que Sylvie Desware posteriormente também corrobora, representou, na verdade, um significativo avanço, já que permitiu identificar o referido messer Lactantio com Lattanzio Tolomei, «um dos maiores eruditos italianos do século XVI, possuidor de vasta coleção de manuscritos e relacionado com os mais famosos literatos do seu tempo», ainda nas palavras de Elsa Gonçalves, que descreve brevemente as suas atestadas relações com Colocci, em seguida mais largamente analisadas por Deswarte no seu trabalho. Se esta identificação foi importante, não menos o foi a proposta de identificação da última personagem referida na nota [26], o sumariamente designado «quel da Ribera»: tratar-se-ia, sem grande margem para dúvidas, segundo a autora, de «António Ribeiro, camarário de Clemente VII, encarregado pelo Pontífice, em 1525, de levar a Rosa de ouro ao Rei de Portugal e de lhe expor verbis o que o embaixador D. Miguel da Silva havia explicado per litteras acerca da gravíssima situação da Cristandade». Depois de referir a provável datação da nota de Colocci e de citar Ana Ferrari, que aponta como data provável para a cópia do Cancioneiro da Biblioteca Nacional os anos entre 1525 e 1527, Elsa Gonçalves conclui:

«Estamos nas vésperas do saque de Roma. Se o ‘libro di portughesi’ fosse o antecedente de B, deixado por António Ribeiro em 1525, teríamos uma explicação para a maneira anómala, irregular e imprevisível como o Cancioneiro foi copiado.

De qualquer modo, o que se pretende com estas observações é apontar para um ambiente – a Cúria romana – e para uma personagem – um português – desse ambiente diplomático-literário que pode estar ligado à história dos apógrafos italianos da nossa lírica das Origens. A hipótese que identifica o detentor do manuscrito chamado por Colocci ‘libro di portughese’ com o portador da Rosa de ouro – que pertencia, não o esqueçamos, ao círculo do bispo D. Miguel da Silva – pode talvez encontrar outros indícios comprovativos, como, por exemplo, a presença no códice que conserva os cinco lais de Bretanha (um manuscrito que, pelo menos em parte, provém da biblioteca de Colocci) de dois poemas em honra do bispo de Viseu».[27]

       Já veremos a questão das datas e da identificação deste António Ribeiro em seguida. Mas antes é de sublinhar a identificação clara, feita agora por Elsa Gonçalves, do «libro di portughese» com o códice original ibérico que Colocci fez copiar. Embora referida ainda em modo condicional, percebe-se que para a investigadora todos os indícios apontam nesse sentido. Já quanto ao «detentor do manuscrito», como lhe chama – e que identifica como sendo António Ribeiro, personagem que, como não deixa de lembrar, «pertencia ao círculo do bispo D. Miguel da Silva» – talvez a expressão não seja a mais adequada: no momento em que Colocci escreve a nota, o detentor (pelo menos temporário) do manuscrito era, na verdade, um tal Messer Octaviano, personagem que ainda não foi possível identificar, mas muito plausivelmente um criado ou familiar de Lattanzio Tolomei, a quem António Ribeiro «l’ha lassato». De resto, mesmo a forma sumária (ou até algo depreciativa) como Colocci designa o português, «quel da Ribera», indica que se trata, para o humanista, de uma figura relativamente secundária – ou seja, não o detentor, mas o simples portador do dito manuscrito. Portador às ordens de quem? Elsa Gonçalves não o explicita completamente neste estudo, mas a conclusão parece clara: o verdadeiro detentor do manuscrito, ou, pelo menos, a personagem que, pela mão de António Ribeiro, o terá feito chegar a Colocci, não pode ser outro senão D. Miguel da Silva [28].

          Quanto ao próprio António Ribeiro, os dados mais recentes da investigação que temos vindo a desenvolver, nomeadamente nos fundos da Torre do Tombo, vêm complicar um pouco a sua identificação inequívoca. Na verdade, pouco depois de Elsa Gonçalves o identificar como o camarário de Clemente VII, Sylvie Deswarte tinha acrescentado novos dados à sua biografia, reforçando a sua proximidade de muitos anos à notável figura de erudito humanista que foi o Bispo de Viseu, uma proximidade atestada por várias cartas, uma das quais datada já de 1516 [29]. Ora, analisando as assinaturas que se leem nessas várias cartas, torna-se claro, como agora verificámos, que o António Ribeiro que assina a carta de 1516 não é o mesmo António Ribeiro, clérigo bracarense, camareiro do Papa e a viver em Roma há 40 anos, como afirma este último numa carta à rainha datada de 1558 [30]. A existência de dois homónimos, ambos próximos de D. Miguel, e durante longos anos, torna mais complexa, pois, a identificação exata de «quel da Ribera» [31].

                                             

         

         De qualquer forma, e seja a um ou outro dos Ribeiros a personagem a que Colocci se se refere na sua nota, se esta identificação for correta, só podemos concluir, pois, que D. Miguel da Silva terá tido um papel central no que respeita ao «libro di portughese» e, portanto, aos apógrafos italianos que nos fizeram chegar a parte mais significativa da poesia trovadoresca galego-portuguesa.

          1. 2. A datação da nota de Colocci

          Deve dizer-se, mesmo assim, que a datação desta nota tem levantado ultimamente algumas dúvidas sobre o seu real sentido. Antes de prosseguirmos, façamos, pois, aqui um curto parêntesis sobre esta questão. Na verdade, desde a sua descoberta e até muito recentemente, a nota de Colocci tinha vindo a ser datada das «vésperas do Saque de Roma» como escreve Elsa Gonçalves (a cidade esteve ocupada de 6 de maio 1527 a 18 de fevereiro de 1528), datação esta que conduzia necessariamente ao momento em que o códice chega a Roma (as palavras de Colocci indicando, pois, que o livro teria sido deixado por António Ribeiro, num primeiro momento, em casa de Lattanzio Tolomei, de quem o humanista faria tenções de o recolher). Um estudo recente de Marco Bernardi sugere, no entanto, que a nota poderá ter sido escrita num contexto bem diferente [32]. Trata-se de um estudo que analisa duas cartas, até agora quase desconhecidas, dirigida a Colocci e escritas ao tempo do Saque de Roma por dois colaboradores próximos (Colocci estava então refugiado longe da cidade [33]), dando-lhe conta do que tinham apurado sobre o destino dos seus livros. A primeira delas, remetida por Antonio Tebaldeo, está datada de 20 de novembro de 1527 (em plena Roma ocupada pelas tropas imperiais), e a segunda, remetida por Pier Andrea Ripanti, de 20 de março de 1528 (no momento imediatamente seguinte) [34]. Para além do interesse das próprias cartas em si (e que nos mostram ainda a grande preocupação de Colocci com a sua biblioteca), para o que nos ocupa aqui, o seu interesse reside no facto de ambas se referirem a um conjunto de livros do destinatário que tentaram localizar (decerto a seu pedido), e que referem estar a salvo, espalhados por diversas casas de amigos seus. Ora os títulos desses livros são muito semelhantes aos anotados pelo próprio Colocci em duas listas que se encontram nos fls, l96r-v e 210r-211v da miscelânea Vat. lat. 4817, exatamente aquela onde se encontra igualmente a célebre nota sobre o “libro di portughese”. Permitindo datar a referida miscelânea mais precisamente desses anos 1527-1528, as duas cartas permitiriam ainda, segundo Bernardi, remeter as ditas listas e apontamentos de Vat. lat. 4817 para as mesmas circunstâncias referidas nas cartas (saque de Roma e a tentativa de Colocci de salvar os seus livros). Assim, como escreve Bernardi:

Mi sembra dunque che le annotazioni di c. 204v e c. 214v acquistino un signficato nuovo: quello di promemoria faticosamente allineati in liste utili per tentare di ricucire le disiecta membra  di una  biblioteca dispersa dalla violenza del Sacco o dalla premura degli amici. Allora varrà la pena di considerare, almeno sul piano delle ipotesi, che anche il «libro di portughesi» e il  Libro reale potessero essere non volumi di cui nel 1527-1528 Colocci aveva sentito parlare e che desiderava procurarsi o almeno studiare, bensì opere già  possedute (o già avute a disposizione), delle quali ora, nella forzosa diaspora libraria più o meno direttamente imposta dalle truppe cesaree alla sua collezione, egli si affanna a ritornare padrone.

Per quanto riguarda il «libro di portughesi», purtroppo non è  possibile dire molto di più, visto che l’identità di quel «messer Ottaviano» che risulta essere l’ultimo personaggio che lo ebbe nella sua disponibilità al tempo dell’appunto di V sfugge per ora ad ogni tentativo di identificazione.

Ou seja, segundo Bernardi, a nota de Colocci sobre o «libro di portughesi» poderia dizer respeito, não ao momento em que o livro teria chegado a Roma, mas sim à sua localização em março de 1528, no momento imediatamente posterior ao Saque (do qual teria escapado, como diria a nota). Ainda com Colocci fora da cidade, o dito livro estaria, pois, em mãos desse desconhecido Messer Octaviano, como aponta. Não sendo esta a sede para uma análise mais detalhada desta nova hipótese de Marco Bernardi, digamos apenas que ela não deixará de complicar ainda mais o papel de «quel da Ribera» no processo.

          2. D. Miguel da Silva e o meio literário italiano e português

          Voltemos um pouco atrás, à nota de Colocci relativa ao libro di portughesi, antes citada: como então dissemos, o texto dessa curta nota permite-nos pressupor, a partir da plausível identificação do portador do livro, António Ribeiro, que algures, ao longo do percurso de vida, o bispo de Viseu terá sido possuidor ou, pelo menos, terá tido entre as mãos um manuscrito que continha cantigas trovadorescos galego-portugueses, exatamente aquele que Colocci refere na nota e do qual manda a fazer duas cópias, os manuscritos que hoje conhecemos como Cancioneiro da Biblioteca Nacional e Cancioneiro da Vaticana. Que códice seria esse e quando e de que forma o bispo de Viseu a ele teria tido acesso? Questões tão interessantes quanto difíceis. Sendo certo que só uma investigação aprofundada sobre D. Miguel da Silva, sobretudo no que diz respeito ao seu período português, o mais obscuro, poderá eventualmente fornecer-nos algumas pistas, aqui deixamos os dados do que tem sido possível apurar no diz respeito à teia das suas relações pessoais e literárias que, de alguma forma, poderão contextualizar esta matéria.

          À semelhança de todas as grandes figuras do humanismo do seu tempo, os interesses culturais de D. Miguel da Silva eram múltiplos e muito abrangentes. Sylvie Deswarte, analisando as suas relações italianas, fornece-nos um conjunto vasto de informações a este respeito. Da arquitetura à pintura e à escultura, das antiguidades romanas e da epigrafia aos estudos e traduções dos clássicos latinos e gregos, das acesas discussões sobre a «língua vulgar» e sobre os projetos de reforma do alfabeto até às questões matemáticas relacionadas com os pesos e medidas, ou até mesmo às semi-jocosas experiências de alquimia levadas a cabo pela curiosa figura de Tomaso Masini, dito Zoroastro (meio irmão de Giovani Rucellai, e que esteve ao serviço de Leonardo da Vinci antes de entrar ao serviço de D. Miguel), a tudo o bispo de Viseu parece ter prestado a sua atenção e mesmo, em vários momentos, o seu apoio enquanto mecenas

          A literatura interessar-nos-á particularmente aqui. Na verdade, se Castiglione, ao dedicar-lhe o seu Libro del Cortegiano, confirma e até simbolicamente assinala o prestígio da sua figura de cortesão humanista, deve dizer-se que não foi o único autor a fazê-lo. Logo por volta de 1515, ou pouco depois, Francesco Cattani da Diocceto lhe dedica um dos seus trabalhos neo-platónicos (Paraphrafis in Politicum Platonis), ao mesmo tempo que, em 1517, Lattanzio Tolomei lhe dedica um epigrama encomiástico em grego, publicado em abertura dos Attici eloquii elegantiae, de Thomas Magister, primeira antologia de textos gregos na Roma renascentista (cuja publicação que D. Miguel financiou); e alguns anos depois, Bernardo Giunta dedica-lhe o seu Il Petrarcha (1522), rica e prestigiosa edição dos textos em vulgar do poeta, e Claudio Tolomei (primo de Lattanzio) o seu diálogo, sobre a questão da reforma do  alfabeto, Il Polito (1525). Il Petrarcha conhecerá mais duas edições, já em tempos do exílio do Cardeal Viseu (Veneza, 1542 e 1543), ambas igualmente com o seu patrocínio [35]. Culto e rico, D. Miguel não só participa ativamente na vida cultural italiana, como para ela contribui, pois, financeiramente, em muitos momentos. Atestando também este seu prestígio, e, para o que aqui nos interessa, as suas ligações a Colocci, na miscelânea colocciana Vat. lat. 7182 (fls. 64v e 89v/89r) podem ler-se dois elogiosos epigramas dirigidos ao Bispo de Viseu pelo poeta Rodolfo Iracinto (e com a dedicatória aparentemente copiada pela mão do próprio Colocci). E em 1546, por iniciativa do Senado de Roma, o seu epigrama “À cidade de Roma” foi gravado numa placa de mármore e colocado no Salão Nobre do palácio, onde ainda hoje se encontra.

          De resto, D. Miguel da Silva, à semelhança de muitos dos seus amigos que, tal como ele, frequentavam os célebres Jardins Literários de Roma (os Orti suburbani de Angelo Colocci ou a Accademia Coryciana, do protonotário apostólico Hans Goritz) era também poeta latino reconhecido (a escolha do Latim inserindo-se no desejado renascimento das culturas clássicas). A sua obra, dispersa e hoje pouco conhecida, necessitará de uma investigação mais aprofundada. De qualquer forma, podemos provisoriamente dizer que, para além dos sete curtos epigramas que conseguimos localizar (desaparecido está um outro que terá escrito  sobre o célebre elefante Hanno, o da embaixada de D. Manuel ao Papa Leão X, em 1514, o poema mais substancial que dele nos resta é o De aqua argentea, interessante composição sobre o Aqueduto da Água de Prata, em Évora, datada do ano da sua inauguração, 1537, e dedicada a D. João III.

          Dele seria também uma outra obra, que o poeta Flavio Jacobo Eborense afirma ter lido em Roma, na sua biblioteca, e que descreve como uma elegante reformulação da tradução latina, originalmente feita a pedido de D. Dinis por Pedro Galvão, de um tratado de teologia medieval (em árabe), da autoria de Gastão de Foix, que identifica como um dos primeiros bispos da cidade depois da reconquista cristã, obra essa que se intitularia De Deo et animorum immortalitate. Frei Francisco Brandão, na sua Monarchia Lusitana (tomo V, pp. 6v e sgs.), sumariando com algum detalhe a obra, coloca algumas dúvidas sobre o seu autor e tradutor [36], acrescentando, no entanto, que «contudo a certeza de ser o livro traduzido por mandado del Rei D. Dinis devia constar da prefação dele e abona bem a curiosidade deste príncipe». Perdidas que estão a obra e a tradução, difícil se torna avaliar a veracidade destes dados, que, a serem verídicos, poderiam atestar o interesse de D. Miguel pelo património escrito medieval.

          Se o Latim parece ter sido, pois, a sua língua de expressão literária exclusiva, os interesses e as relações de D. Miguel no campo da literatura eram bem mais alargados. O contexto cultural italiano, com destaque para a sua amizade com Castiglione, tem sido o mais estudado [37]. Quanto às suas relações literárias portuguesas, muito haverá ainda decerto a descobrir. De qualquer forma, duas figuras têm vindo a ganhar assinalável relevo na investigação mais recente, pelos laços de proximidade que comprovadamente mantiveram com o Bispo de Viseu: João Rodrigues de Sá de Meneses (1485?-1579), e Francisco Sá de Miranda (1481-1558) [38]. Ambos antologiados por Garcia de Resende no seu Cancioneiro Geral (1516), e contando-se entre os autores mais cultos da recolha, foram ambos figuras grandes da literatura portuguesa do seu tempo (embora a importância póstuma do segundo ultrapasse largamente a do primeiro).

          De João Rodrigues de Sá, natural do Porto, cidade da qual foi, a partir de 1524 e por largos anos, alcaide-mor [39], chegou-nos mesmo a única composição do Cancioneiro Geral que refere explicitamente D. Miguel da Silva. Trata-se de uma curiosa Pergunta de João Rodrigues de Sá a Dom Miguel da Silva (f. CXXV, vide Anexo), composição datável talvez de 1513 [40]. Embora se trate de uma pergunta sem resposta (pelo menos no Cancioneiro), e de o seu sentido não ser absolutamente claro (trata-se de um enigma, mais do que de uma pergunta), dois aspetos desta composição merecem ser sublinhados: por um lado, o precoce e extenso elogio (que ocupa dois terços do poema) a esta figura ímpar «de eloquência e de doutrina/ em latim, grego e linguagem», face à qual o homem mais reputado se sentirá «salvagem/ assi mesmo ou aldeão»; por outro lado, o facto de ela comprovar a antiguidade das relações de proximidade entre João Rodrigues de Sá e D. Miguel da Silva.

          Na verdade, estas relações têm sido datadas (erradamente, como vimos) apenas de 1527, ano em que João Rodrigues escreve, desta vez em Latim, uma primeira versão do seu conhecido poema dialogado De Platano [41], no qual um dos principais «intervenientes» é exatamente o Bispo de Viseu. Tendo por cenário o Mosteiro de Santo Tirso (do qual D. Miguel era abade, recordemo-lo), trata-se de uma tão amigável quanto erudita discussão sobre a existência ou não, no norte de Portugal e na cerca do mosteiro, «dessa árvore que os antigos tanto celebraram». D. Miguel, e também o outro participante do diálogo, o humanista Jorge Coelho (m. 1563), defendem inicialmente que não podem ser plátanos as árvores que João Rodrigues crê serem abundantes na região, e que eles afirmam serem muito raras, mesmo em Itália; mas no final, tendo João Rodrigues mandado um seu criado buscar um ramo da dita árvore, os seus dois opositores acabam risonhamente por se dar por vencidos. A discussão tem, na verdade, um valor simbólico, como nota Ana María Tarrío [42]: trata-se de demonstrar que tão prestigiada árvore, largamente citada pelos autores clássicos (nomeadamente por Plínio), e presente, à época, nos jardins humanistas de Itália, há muito existia no reino lusitano e nas propriedades familiares do autor, em particular (e, como se vem a descobrir, até no próprio mosteiro, o que, também simbolicamente, não será mero acaso). Mas note-se, para além desta dimensão simbólica, que o interesse simultâneo pela botânica, a história, a arqueologia e a filologia era comum entre os intelectuais humanistas. A botânica, em particular, aqui em destaque, era, de resto, uma ciência cara a um dos maiores amigos de D. Miguel da Silva, exatamente Messer Lattanzio Tolomei, possuidor de um grande herbário, com plantas raras (hoje desaparecido [43]). Simples coincidência ou não, notemos, desde já, que a data da escrita inicial do De Platano, 1527, coincide latamente com o momento em que o Libro di portughesi terá chegado às mãos do mesmo Lattanzio Tolomei. Seja como for, a relação de proximidade entre o alcaide-mor do Porto e o renovador da foz do Douro está, pois, amplamente documentada na obra do primeiro, remontando mesmo à juventude de ambos.

          Já no que toca a Sá de Miranda, a situação é bem diferente. Não havendo, ao longo da sua extensa obra, qualquer referência ao bispo de Viseu, até muito recentemente a questão da eventual relação entre ambos nem sequer se colocava. Nem mesmo a sua famosa viagem a Itália, que os seus biógrafos situavam entre 1521 e 1526, período que coincide com os anos finais de D. Miguel como embaixador, tinha suscitado qualquer associação entre ambos. Embora estando sinalizada, desde há muito, a referência que o poeta faz aos italianos Giovanni Rucellai e Lattanzio Tolomei num passo da sua écloga Nemoroso [44], foi, na verdade, Silvie Deswarte a primeira investigadora a assinalar o facto de estes dois nomes serem exatamente os dos dois mais próximos amigos italianos de D. Miguel, postulando assim que seria por intermédio do embaixador que Sá de Miranda os teria conhecido [45]. Num artigo posterior, Deswarte coligiu novos e mais específicos dados que lhe permitiram situar melhor esta relação:

Les documents publiés par le Père António Domingues de Sousa Costa, O. F. dans Chartularium Universitatis Portugalensis (1288-1537) XII (1521-1525) (Lisbon: 1995) et XIII (1526-1529) (Lisbon: 1999) viennent confirmer notre hypothèse que le poète Sá de Miranda résidait à Rome dans la maison de D. Miguel da Silva. Le poète est continuellement qualifié dans ces documents de ‘commensal’ de l’ambassadeur D. Miguel da Silva. À Rome, il devint docteur en droit canon et ne rentra au Portugal qu’en 1527 (XIII, nº 56634 (23.2.1527) 215-217) [46].

         A publicação do Chartularium citado, pelo Padre Sousa Costa, pôs, de fato, à disposição dos investigadores uma série de documentos inéditos e muito interessantes relativos à biografia de Sá de Miranda. E já mais recentemente (2008), alguns outros documentos, publicados por Correia de Carvalho no seu exaustivo trabalho sobre o mosteiro de Santo Tirso [47], a estes se vieram juntar, completando um quadro de vida que obrigará necessariamente à revisão da biografia tradicional do poeta. Para o que nos interessa aqui, resumimos os dados mais substanciais (começando com os que dizem respeito a D. Miguel da Silva, necessários para situarmos melhor a sua relação com Sá de Miranda):

          Como faz notar Correia de Carvalho, D. Miguel era também sobrinho do célebre D. Diogo de Sousa, bispo de Braga de 1505 a 1532, data da sua morte, humanista e grande renovador da cidade. Com ele teria vivido antes da sua nomeação oficial como embaixador em Roma, já que é em Braga que se encontra ainda em 1513, como tivemos ocasião de referir. Mas é esta relação familiar que explica ainda, entre outras coisas, a sua ligação com a região, que se concretiza em vários benefícios de que foi titular. Assim, como também já brevemente referimos, em 1513, D. Miguel é titular da paróquia de Duas Igrejas (concelho de Vila Verde).

          Ora, a 8 de agosto de 1515, Francisco Sá de Miranda, à época, titular da igreja de S Julião de Mouronho, da diocese de Coimbra (que detinha desde 1509 [48]), pede ao Papa essa mesma igreja de Santa Maria de Duas Igrejas, por D. Miguel da Silva ter renunciado a esse e a outros benefícios (Chartularium Universitatis Portugalensis, Vol. XI, pp. 335-336). Mas a relação entre os dois homens continua e prolonga-se por muitos anos:

– por súplica de 18 de maio de 1518, D. Miguel da Silva pede ao Papa que a comenda, que, por sua renúncia, havia sido dada a Francisco Sá de Miranda, cavaleiro da Ordem Cristo, da igreja de Santa Maria de Duas Igrejas da diocese de Braga, voltasse à sua posse, caso ele a cedesse ou a deixasse, para não ser muito prejudicado com as renúncias que fez, agora que é embaixador do rei de Portugal junto do papa e da Santa Sé. (idem, pp. 576-577);

– a 22 de junho de 1523, nova súplica de D. Miguel da Silva, que se dispõe a resignar de qualquer direito sobre a igreja de Santa Maria de Duas Igrejas, em favor de Francisco de Sá, cavaleiro professo da Ordem de Cristo e familiar contínuo comensal do embaixador (idem, vol. XII, pp. 296-299) Este acordo será ratificado já por Clemente VII, por bula de 26 de novembro de 1523 (idem, pp. 346-349);

– a 5 de maio de 1524, D. Miguel, que possuía então já a tesouraria, canonicato e prebenda de Coimbra, deles se dispõe a resignar em favor de Sá de Miranda (idem, p. 371), o que lhe é concedido por bula de Clemente VII datada desse mesmo dia (idem, p. 373);

– por súplica de 23 de fevereiro de 1524, repetida a 31 de março e a 26 de maio desse mesmo ano, Francisco de Sá pede prorrogação do prazo de tempo para receber as ordens sacras exigidas por estes benefícios (idem, pp. 387, 398, 500);

– finalmente, por súplica de 23 de fevereiro de 1527, D. Miguel da Silva, bispo eleito de Viseu (portanto, já então em Portugal, bem como Sá de Miranda, presente ao ato), pede o regresso à tesouraria, canonicato e prebenda de Coimbra, a que Francisco Sá de Miranda tinha renunciado nas mãos do ordinário (idem, vol. XIII, p. 215). Antes de 1530, Sá de Miranda casará (nunca tendo recebido, pois, as ordens sacras exigidas). E retirar-se-á pouco depois para a sua comenda das Duas Igrejas (que manteve, não já como clérigo, mas como cavaleiro da Ordem de Cristo).

        Todos estes documentos parecem indicar, pois, não só a proximidade de Sá de Miranda com D. Miguel da Silva, mas, como comenta Fernando Marques, «que o poeta do Neiva fazia parte do séquito do embaixador de Portugal, vivendo na Cúria romana. Por isso, é legítimo pensar que Francisco Sá de Miranda terá acompanhado aquele, quando foi para Roma, a mando de D. Manuel, como embaixador junto do papa e do concílio de Latrão». Ou seja, a viagem a Itália do Dr. Francisco de Sá não terá sido exatamente uma viagem, mas sim uma prolongada estadia, praticamente coincidente com o período em que o futuro bispo de Viseu, a cuja casa pertenceria, desempenhou as suas funções de embaixador na Cúria (apenas não o acompanhando imediatamente no regresso, mas permanecendo em Roma ainda por cerca de um ano e meio).

          O silêncio de Sá de Miranda em relação ao Cardeal Viseu é, assim, um dos mais intrigantes, ou, se quisermos, um dos mais reveladores. Mas talvez uma passagem da sua écloga Montano (a João Rodrigues de Sá) o possa, de certa forma, explicar: «Que o que é virtuoso/ não-no deixam descansar/ nem com vida, nem repouso./ Se me deixassem falar…/ Mas falar, pastor, não ouso».

      Os dois primos Sá, João Rodrigues e Francisco, são, pois, dois dos escritores portugueses de Quinhentos com quem D. Miguel da Silva manteve, comprovadamente, relações de proximidade. Não teriam sido os únicos, decerto, e muito haverá ainda que investigar nesta matéria. Nomeadamente em relação a outro dos grandes nomes da época, Bernardim Ribeiro, o qual, apesar da nebulosa que recobre a sua biografia, parece ter sido também muito próximo de Sá de Miranda. Plausível, embora não comprovada documentalmente, é também uma sua eventual estadia em Itália. Foi, de resto, em Ferrara, nas oficinas do judeu emigrado Abraão Usque, que, como se sabe, foi dada à estampa, em 1554 (ainda em vida de D. Miguel, portanto), a primeira edição da sua História de Menina e Moça. Por motivos que não se prenderão necessariamente com aquele que aqui nos ocupa, os cancioneiros medievais, será este também um interessante caminho a explorar [49].

          Acrescente-se ainda que, aquando da sua fuga de Viseu, D. Miguel seguiu acompanhado, como acima referimos, por um arcediago da Sé, Miguel da Paz de seu nome, e ainda por António Godinho, cidadão de Viseu casado com Francisca de Barros, sobrinha do historiador João de Barros e irmã do escritor Gaspar Barreiros [50]. E está documentada a continuada proteção que esta culta família viseense recebeu por parte de D. Miguel e de que resultará o arriscado gesto do fiel António Godinho (sobre cujo destino posterior, infelizmente, nada mais conseguimos apurar).

(biografia a ser atualizada, caso surjam novos elementos)

ANEXO

Pergunta de João Rodrigues de Sá a Dom Miguel da Silva

Cume em que sa linhagem
dos da Silva mais empina,
a quem nom s’acha paragem
de eloquência e de doutrina
em latim, grego e linguagem;
ante quem, quem a ventagem
dos outros tem com rezão,
perde tanto a presunção
que se parece salvagem
assi mesmo ou aldeão;

pois vos quis a natureza
tanto esperar em saber
e co ele dar nobreza
pera a ninguém o esconder
nem mostrar nisso graveza
e brandura e que despreza
os despreçeos d’altarada
e fantesia enlevada
quando de tanta rudeza
como a minha é perguntada;

pergunto: qual foi o mar
contr’òs deuses tão ousado
que nom quis fazer lugar
ao que mais alto estado
tem, vendo todos lhe dar?
Que nunca se vê mudar
com ondas, maré, nem vento,
mas immoto e firme estar,
sem tão somente mostrar
nem sinal de movimento?

(Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, CXXV)

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[1] Roma: Bulzoni Editore, 1989; o livro retoma e alarga um artigo aparecido no ano anterior «La Rome de D. Miguel da Silva (1515-1525». Lisboa: separata de Publicações do II Centenário da Academia de Ciências, 1988. Disponível online aqui

[2] «D. João III e D. Miguel da Silva, bispo de Viseu: novas razões para um ódio velho», Revista de História da Sociedade e da Cultura, 10 Tomo I (2010) 141-168. Disponível online aqui

[3] op. cit. , p. 9.

[4] Buescu, op. cit., p. 150.

[5] E nas quais, deve dizer-se, deixa no ar, de forma subtil mas clara, a sugestão de não ser alheio a essa mesma eleição (facto que, a meu conhecimento, tem escapado a todos os historiadores que se têm ocupado do assunto).

[6] Nomeado por bula papal datada de 21 de novembro de 1526, a sua sagração só acontece três anos depois, em 1529 – o que não o impede de chamar a si o governo do bispado durantes esse tempo, diga-se.

[7] Francisco Carvalho Correia, no seu exaustivo estudo sobre o mosteiro de Santo Tirso, cita, entre outros, os seguintes: logo desde 1513, a paróquia de S. Romão de Mesão Frio (Guimarães), que mais tarde, em 1515, troca por S. Lourenço de Santarém; a paróquia de Duas Igrejas (concelho de Vila Verde); foi também prior de Landim e do mosteiro de S. Simão da Junqueira, e, enquanto tal, reconstrutor da Igreja de S. Bartolomeu (da qual subsistem duas lápides com o seu nome, decerto obra sua); e, desde 1517, abade de Santo Tirso (benefício a que renuncia, em favor de seu sobrinho D. António da Silva, em 1536) (O Mosteiro de Santo Tirso, de 978 a 1588. A silhueta de uma entidade projectada no chão de uma história milenária, tese de doutoramento, Universidade de Santiago de Compostela, 2008, pp. 430-439. Disponível online aqui

[8] É a descrição que, muitos anos depois, em 1553, nos dá António de Cabedo, no seu poema Fontellum. Cabedo era o sobrinho do novo bispo, D. Gonçalo Pinheiro, eleito nesse mesmo ano (os jardins e a mata do Fontelo tinham, entretanto, ficado abandonados, desde 1540).

[9] «D. Miguel da Silva e as origens da arquitetura do Renascimento em Portugal. O Mundo da Arte. Revista de Arte, Arqueologia e Etnografia, II série, I, Lisboa: 1988, p. 5-23

[10] Na realidade, o Concílio foi, nesta data, convocado para a cidade de Mântua. Os sucessivos adiamentos, motivados pelas perturbações políticas, fizeram com que ele acabasse por se realizar em Trento, e com início apenas em 1545. D. Miguel foi um dos participantes.

[11] O breve era, como se compreende, uma forma de pressão sobre o monarca. Como relata a próprio D. Miguel posteriormente (na carta em que se justifica, e de falaremos mais adiante), D. João III terá sugerido que, como resposta, ele alegasse estar doente, desculpa que, como acrescenta na dita carta, seria, além de pouco credível, indigna da sua reputação.

[12] «Dom Miguel da Silva: o cardeal de Viseu».

[13] À sua chegada a Itália, Paulo III tinha nomeado o cardeal Viseu para o importante cargo de embaixador da Santa Sé em Veneza.

[14] Carta publicada por José de Castro em Portugal no Concílio de Trento, vol. I, Lisboa, União Gráfica, 1944, pp. 360-381.

[15] O sucedido com a diocese de Viseu é sintomático: obrigado a renunciar ao bispado, contra a vontade de Paulo III, a situação arrastou.se por algum tempo, até se chegar à solução de esta renúncia ser feita a favor do seu afilhado Cardeal Alexandre Farnese (o que leva a supor que se tratou de uma renúncia formal e que os rendimentos da diocese continuariam a ser-lhe encaminhados).

[16] É uma das afirmações que constam no já referido Breve papal de que foi portador, aquando do seu regresso ao reino em 1525.

[17] Diz Mons. José de Castro, em relação ao conclave de 1549 (no qual D. João III quis à força que o Cardeal D. Henrique se apresentasse): «Enquanto que o Cardeal Dom Henrique teve o máximo, por cortezia, de 15 votos no dia 13 de Dezembro de 1549, o Cardeal Dom Miguel teve sempre votos para Papa em quasi todos os escrutínios, chegando uma vez a ser votado por 13 cardeais. Se tivera protecção oficial, teria subido, sem duvida, ao sólio pontifício» (D- Miguel da Silva: o cardeal de Viseu). Mas também já antes Frei Luís de Sousa, nos Anais de D. João III, deixa no ar essa mesma ideia (Clássicos Sá da Costa, vol. II, Lisboa 1954, p. 169)

[18] Viseu: instituições religiosas, Porto, 1928, pp.

[19] Viseu. Letras e letrados visienses 1934

[20] Francisco de Holanda esteve em Itália nos anos 1538-1540, quando D. Miguel estava ainda em Portugal, mas Deswarte sugere que o bispo de Viseu estaria na origem da vontade do pintor de visitar o país. Embora no seu tratado Da pintura antiga (1548) o nome de D. Miguel nunca seja citado, logo no primeiro diálogo Holanda refere que foi por intermédio de Blosio Palladio e Lattanzio Tolomei, os dois mais próximos amigos italianos do bispo de Viseu, que foi apresentado a Miguel Ângelo (ob. cit., p. 179)

[21] Livro das obras de Garcia de Resende, ed. Evelina Verdelho, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, pp. 567 e 569.

[22] Que a publica, embora com um importante erro de transcrição, como adiante veremos, na sua edição diplomática do Canzioneri portughese della Vaticana, Halle, 1875

[23] A personalidade algo desordenada ou mesmo declaradamente caótica de Colocci, que estas notas dispersas atestam, é aludida por Deswarte e por vários outros autores.

[24] Conservado noutra miscelânea colocciana, o códice Vat. lat. 3217.

[25] «Quel da Ribera», in Cultura neolatina, vol. 44 (1984) p. 219-224; republicado em «Pressupostos históricos e geográficos à crítica textual no âmbito da lírica medieval galego-portuguesa: (l) «Quel da Ribera»; (2) A Romaria, de San Servando», no volume De Roma ata Lixboa. Estudos sobre os cancioneiros galego-portugueses, A Coruña: Real Academia Galega, 2016.

[26] Apesar das suas diversas pesquisas, como nos diz, Elsa Gonçalves não conseguiu identificar messer Octaviano, que supõe ser um familiar de Lattanzio Tolomei. Também Sylvie Deswarte não propõe qualquer identificação para esta primeira personagem referida, que parece ser, manifestamente, alguém pertencente à casa de Messer Lattanzio.

[27] Trata-se do ms. Vat. lat. 7182, e estes dois poemas encontram-se a ff. 64v e 89r (e os lais, por sua vez, entre os ff. 276-278).

[28] Num artigo posterior, Elsa Gonçalves já indica claramente isto mesmo (a entrada «Angelo Colocci», em Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani, Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, 1993),

[29] Deswartes, p. 195, nota 167, cita uma carta de António Ribeiro ao secretário António Carneiro, datada de Bordéus, em abril desse ano, em que refere «um negoceo sobre que vim de D. Miguel…» (então embaixador em Roma). Deste correspondente há, pelo menos, mais duas cartas na TT. Sobre toda esta questão doa homónimos, vide o nosso artigo LEME, Margarida e LOPES, Graça Videira – “Investigando os cancioneiros medievais galego-portugueses – novas pistas”. Medievalista 28, 2020. Disponível aqui

[30] Carta de António Ribeiro para a rainha D. Catarina, de Roma, 20 de Fevereiro de 1558. ANTT – Corpo Cronológico, pt. 1, mç. 102, n.º 77.

[31] Quanto a este António Ribeiro (II), Sylvie Deswarte cita uma carta de um agente de D. João III em Roma (António de Barros), datada de junho de 1540, na véspera da fuga do bispo de Viseu e no rescaldo da escandalosa (para a corte portuguesa) questão da concessão pelo Papa, por sugestão de D. Miguel, da abadia de Alcobaça ao seu neto (e afilhado de D. Miguel) cardeal Farnese em detrimento do infante D. Henrique, e onde é dito explicitamente que quem serviu de intermediário foi «António Ribeiro que aqui faz os negocios do bispo de Viseu».

[32] Bernardi, Marco, «Una lettera inedita dal Sacco di Roma: qualche novità su Colocci, il «libro di portughesi» e il Libro reale», Critica del testo, XX/ 2, 2017. Disponível online aqui

[33] Até meados de dezembro de 1527 em Jesi, depois em Orvieto, onde se refugiara Clemente VII.

[34] A primeira encontra-se no Vat. lat. 4104, cc. 79r-80v, e a segunda no Vat. lat. 4105, cc. 278r-279v

[35] D. Miguel da Silva era então legado papal em Veneza. Rita Marnoto, Cortegiano e cortesão. Baldassarre Castiglione e D. Miguel da Silva, Genève, Centre Internationale d’Etudes Portugaises, 2017, p. 50. (disponível online aqui)

[36] De facto, não há qualquer notícia de Gaston de Foix ter sido bispo de Évora. Também Barbosa Machado cita esta tradução, na sua Biblioteca Lusitana.

[37] Para além da obra de Sylvie Deswarte, que temos vindo a citar, vide o estudo mais recente de Rita Marnoto, antes citado.

[38] E os dois eram, de resto, primos, embora com distintos estatutos sociais: enquanto João Rodrigues pertencia à grande nobreza (e a sua primeira mulher, D. Camila, fosse filha do poderoso D. Martinho de Castelo Branco, conde de Vila Nova e vedor da Fazenda), Sá de Miranda era filho natural de um cónego da Sé de Coimbra, Gonçalo Mendes de Sá.

[39] Foi também político e militar, tendo combatido no norte de África, e tendo também integrado algumas importantes embaixadas de D. Manuel. Latinista e helenista de mérito, traduziu Homero, Ovídio, Píndaro, Anacreonte, entre outros.

[40] Ao contrário do que afirma Buescu, quando sugere que D. Miguel da Silva não mais terá regressado a Portugal desde o momento em que, como estudante, rumou a Paris, a Siena e depois, como embaixador, a Roma, um documento de que é testemunha comprova que, em 1513, se encontrava em Braga (Correia, Francisco Carvalho, O Mosteiro de Santo Tirso, ob. cit., p. 431). Atendendo a que todas as composições do Cancioneiro Geral são necessariamente anteriores ao verão de 1516, e que em 1514 D. Miguel está já em Roma (para onde não consta que João Rodrigues tenha viajado ao tempo) é plausível que a esta pergunta de João Rodrigues de Sá date exatamente de 1513 (e não de 1515, como sugere Ana María Tarrío). Tarrío é, de resto, a meu conhecimento, a única investigadora que se ocupou, e bem, desta composição. Vide: «Notas sobre el humanismo de João Rodrigues de Sá de Meneses», Latin and Vernacular in Renaissance Iberia, II: Translations and adaptations, Manchester Spanish and Portuguese studies, 2006. Disponível online aqui

[41] Cerca de dez anos depois, como o próprio nos diz, João Rodrigues acrescenta uma segunda parte, bem mais extensa e erudita, na qual discute o assunto com o sevilhano Juan Fernández, então professor da Universidade de Coimbra. Em anos recentes, o poema foi editado, em edição bilingue, por Ana María Tarrío, em Paisagem e erudição no humanismo português: João Rodrigues de Sá de Meneses, De Platano, 1527-1537, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009.

[42] «Notas sobre el humanismo de João Rodrigues de Sá de Meneses», ob. cit.

[43] Deswarte, ob. cit., p. 236.

[44] Na  canção «En la muerte del pastor Nemoroso Laso de la Vega», que fecha a écloga: «Dos que agora han alzado/ Sena y Florencia tanto/ por noble sangre y lengua, / daño tan grande y mengua,/ que nunca pudo igualalla el llanto,/ aunque fuera de ley./ Juan Rucelai y Latancio Tolomei».

[45] «La Rome…», ob. cit., pp. 215-216.

[46] «Le voyage epigraphique…», ob. cit., p.

[47] O mosteiro de Santo Tirso, ob, cit.

[48] Fernando Marques, no seu blog O Estado da Questão, faz uma excelente síntese dos dados atualmente conhecidos. Seguimo-lo aqui de forma breve.

[49] No entanto, em amigável discussão particular com o meu colega e amigo Prof. José Camões, perguntou-me ele se não considerávamos a hipótese de «quel de Ribera» poder ser, eventualmente, Bernardim Ribeiro. Sendo que nenhuma hipótese pode ser posta de lado, dado ser o sintético apontamento de Colocci, pelo menos de momento, um testemunho único, não me parece também que seja esta uma hipótese muito provável.

[50] “Resumida notícia dos bispos de Vizeu nos séculos XVI, XVII  XVIII”, Obras de Francisco Alexandre Lobo I, Lisboa 1848, pp. 270