O PROJETO2022-11-02T22:32:29+00:00

PROJETO

Cancioneiros medievais

STEMMA – Do canto à escrita –  produção material e percursos da lírica galego-portuguesa

Visão Geral

Desde a redescoberta oitocentista dos primeiros manuscritos de trovadores, o seu valor literário, artístico e patrimonial único tem sido largamente reconhecido. Editar e publicar as cantigas, e entender a arte requintada dos trovadores, foi e tem sido a principal tarefa de várias gerações de investigadores. Quanto aos próprios manuscritos, um número significativo de questões permanecem sem resposta, tanto as que dizem respeito aos códices e fragmentos sobreviventes (quem os mandou executar? Onde? Quando?), como aos manuscritos perdidos, particularmente o grande códice medieval que foi copiado em Itália por volta de 1525-1528, por ordem do humanista Angelo Colocci. O nosso projeto centrou-se, pois, nos manuscritos trovadorescos, como preciosos e frágeis testemunhos da Idade Média ibérica. Decidimos abordá-los a partir de duas metodologias diferentes, mas complementares:

(1) A materialidade do Cancioneiro da Ajuda e de códigos semelhantes: uma abordagem molecular

O Cancioneiro da Ajuda, único cancioneiro medieval sobrevivente, tem sido objeto de numerosos estudos. No entanto, na ausência de testemunhos externos e fontes coevas, as questões que este manuscrito continua a suscitar só poderiam eventualmente ser resolvidas através de uma análise científica direta, com o uso de técnicas laboratoriais modernas. Foi isso que nos propusemos fazer. Nos últimos anos, a co-IR desta equipa e seu grupo desenvolveram e testaram uma abordagem para a identificação molecular das cores usadas em muitos tipos diferentes de códices medievais, incluindo o Cancioneiro da Ajuda. O objetivo desta metodologia é determinar a composição precisa das tintas – identificando pigmentos, corantes, meios de ligação e outros compostos, como cargas (aditivos). Ao caracterizar com precisão as tintas no contexto, é possível propor cronologias para o uso de corantes em manuscritos europeus medievais.

A análise científica dos pigmentos e outros materiais usados nas iluminuras de A já antes tinha provado ser útil nos nossos esforços para datar com precisão o manuscrito e, neste projeto, pretendemos também localizar geograficamente, de forma mais precisa, o seu local de produção. A este nível, duas cores mostraram-se já extremamente informativas em termos de sua especificidade: o azul de lápis-lazúli e os rosa e vermelhos do pau-brasil. Propusemos assim que o excepcional estado de conservação do lápis-lazúli possa ser vinculado ao aglutinante usado e a uma formulação específica de tinta. Duas outras cores (amarelos) mostraram grande potencial para serem informativas sobre o quando e o onde: o ouro musivo e o amarelo ocre. Resumidamente, o pigmento sintético conhecido como ouro musivo parece ter sido introduzido no século XIII. E acreditamos que as variações na receita da sua produção podem ser ligadas a quando e onde foi preparado. O amarelo ocre também pode fornecer pistas importantes, uma vez que eventualmente será possível determinar com alguma exatidão a mina de onde foi extraído. Paralelamente, iniciámos também um estudo preliminar sobre as tintas de escrita, cuja exploração futura consideramos importante.

O objetivo deste estudo foi, pois, o de realizar, pela primeira vez, um estudo molecular comparativo das miniaturas de A (incluindo as tintas de escrita), estudo nunca antes feito, e que comportou necessariamente uma dimensão comparativa. Na verdade, a diversidade de cores da A, acentuada pela presença do lápis-lazúli e do pau-brasil, demonstra o luxo da paleta de cores. Considerando que Patricia Stirnemann concluiu que as iluminuras são obra de apenas um artista e que essas cores também apresentam especificidades, elas fornecem uma base excepcional, que foi explorada para análises comparativas com manuscritos iluminados ibéricos contemporâneos e cancioneiros europeus, bem como para uma análise mais aprofundada. de pigmentos nos códices de Afonso X, particularmente as Cantigas de Santa Maria (Codice de los Musicos e Codice Rico). De fato, enquanto alguns especialistas argumentam que A pode ter sido produzido na corte afonsina, outros sugerem uma localização portuguesa (talvez na corte do rei D. Dinis), e tentámos encontrar dados factuais que pudessem esclarecer essa questão.
Assim, tendo já comprovado que a cor da pintura em lápis-lazúli e pau-brasil revelou características específicas, nunca antes encontradas nos nossos estudos sobre a identificação molecular de cores em muitos tipos diferentes de códices medievais (desde as bíblias românicas até aos livros de horas do século XV), entendemos investigar por que razão o azul do Cancioneiro da Ajuda se encontra tão bem preservado. A sua superfície intocada e a alta saturação cromática poderiam ser devidas a uma formulação diferente dos ligantes; uma pedra de melhor qualidade que permitisse um grão mais fino, levando a uma melhor relação ligante / pigmento; ou uma preparação particular do suporte. Dado o alto nível de especialização do artista com os materiais, propomos que o aglutinante usado para o azul de lápis-lazúli pode explicar o estado incomum de preservação dessa cor. Tentativas de reproduzir essa tinta com o máximo de precisão histórica foram realizadas durante este projeto seguindo uma metodologia desenvolvida por nossa equipa. Realizámos, ainda, várias tentativas para reproduzir os tons de rosa claro baseados em pigmentos de pau-brasil, a partir das quais discutimos as variações do processo como formas de propor um cronograma de receita (em décadas). Esta pesquisa foi ancorada em estudos aprofundados realizados por membros da equipa sobre a fabricação de pigmentos de pau-brasil através do uso de reconstruções historicamente precisas. Da mesma forma, mas em um grau mais exploratório, para o ouro musivo. Finalmente, iniciámos o primeiro estudo completo sobre a composição molecular das tintas de escrita, abordando tanto a quantificação dos íons metálicos quanto a caracterização dos polifenóis (também conhecidos como “taninos”). Devido à complexidade destes sistemas, foram desenvolvidas sinergias com outro projeto, focado na caracterização de Polifenóis em Arte.

(2) Os códices italianos e sua matriz medieval

Cancioneiro da Ajuda possui semelhanças, mas também relações problemáticas, com os outros dois cancioneiros sobreviventes, B e V, ambos cópias do século XVI de um manuscrito desaparecido, e os três com os pergaminhos Vindel e SharrerAssim, a segunda componente deste projeto centrou-se na investigação contextual e histórica sobre todos os manuscritos, seus mandantes, proprietários e percursos, o que foi feito não só através da análise cuidada a estes próprios manuscritos, mas também da pesquisa em arquivos e bibliotecas, nomeadamente no que diz respeito aos círculos humanistas italianos e portugueses onde se moveram Angelo Colocci e D. Miguel da Silva, bispo de Viseu.

Na verdade, desde D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos que os investigadores têm tentado construir um stemma (uma árvore de relações ou família de manuscritos) ligando todas os testemunhos, com várias hipóteses ainda em debate. Mas a falta de dados factuais para cada um dos 5 principais manuscritos sobreviventes torna tais hipóteses incertas.

No que diz respeito às cópias italianas (de que A não foi seguramente a matriz, pois contém apenas 310 cantigas de amor, longe do total de 1680 cantigas de todos géneros reunidas em B e V), no final da década de 1970, Elsa Gonçalves pôde dar um importante passo em frente: ao reler uma das anotações de Angelo Colocci, num seu livro de apontamentos, sobre um certo ‘libro di portughesi‘ que ‘messer Lactancio‘ se preparava para receber da parte de ‘quel da Ribera’, identificou as duas figuras citadas na nota, sendo a primeira o humanista Lactanzio Tolomei e a última António Ribeiro, clérigo português na Cúria.

«Messer Octaviano di messer Lactantio ha il libro di portughesi; quel da Ribera l’ha lassato» (Vat. Lat. 4817, fl. 204v)

Mais recentemente, Sylvie Deswarte-Rosa forneceu importantes informações adicionais sobre esta figura: que Ribeiro não era outro senão o clérigo António Ribeiro, secretário pessoal de D. Miguel da Silva, bispo de Viseu, por largos anos embaixador na Cúria papal. Esta informação sugere fortemente que o remetente do cancioneiro medieval que viajou até Roma terá sido decerto D. Miguel, personagem cuja biografia e trabalho ainda são em grande parte desconhecidos. De facto, após seu retorno forçado a Portugal em 1525, por ordem de D. João III, e após uma série de confrontos com o rei português, finalmente, em 1540, D. Miguel fugiu de novo para Roma e, na sequência desta fuga, o monarca “desnaturalizou-o”, sendo seu nome apagado de todos os documentos e crónicas do reino. Pesquisas preliminares de alguns membros desta equipa mostraram que o bispo de Viseu terá efetivamente desempenhado um papel crucial na história dos manuscritos dos trovadores. 

No que toca a esta vertente do projeto, procedemos em duas direções diferentes:

i) a primeira, uma análise interna dos manuscritos sobreviventes, procurando traços físicos característicos nos textos que nos dêem informações sobre a sua produção e cópia (aspetos gráficos, espaços, erros), mas também analisando as numerosas notas e desenhos tardios de A (principalmente dos séculos XV e XVI), e os textos espúrios presentes em B e V (também datados do mesmo período tardio), alguns deles acompanhados do nome do autor;

ii) a segunda direção foi, como se disse, uma pesquisa exaustiva em bibliotecas e arquivos, em particular aqueles relacionados com figuras chave do Renascimento italiano e português que desempenharam um papel comprovado na preservação da Lírica Galego-Portuguesa. Trata-se de um trabalho importante também num contexto mais amplo, a saber, a rede das relações culturais e pessoais entre os intelectuais da Renascença europeia. D. Miguel da Silva, bispo de Viseu, amigo de Colocci e Lactanzio Tolomei, mas também de Tiziano, Rafael, Leonardo da Vinci, Pietro Bembo e Baldassar Castiglione (que lhe dedicou o seu famoso Livro del Cortigiano), foi uma dessas figuras-chave, e publicar a sua obra inédita (poemas, cartas) constituiu igualmente um resultado lateral desta investigação. Também outros humanistas portugueses, como André de Resende, Duarte Nunes de Leão e António Ferreira, foram objeto da nossa atenção. Mas seguimos igualmente outras pistas, em particular as relacionadas com os nomes que podem ser encontrados em alguns dos fólios em branco de A, como o rei D. Duarte ou Pedro Homem.

BIBLIOGRAFIA

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