MEMÓRIAS DA FUGA2023-01-06T18:34:36+00:00

MEMÓRIAS DA FUGA

          Nos arquivos da Torre do Tombo, localizámos um dossiê relativo à fuga do Bispo de Viseu e seus desenvolvimentos posteriores. Trata-se de um conjunto de 12 documentos, os primeiros de um conjunto de 39 agrupados numa “Miscelânea Histórico-política” (Manuscritos da Livraria, n.º 169, PT/TT/MSLIV/0169), a qual, na contra capa anterior, apresenta marca de posse de Cristóvão Salema Correia, personagem que foi inquisidor e tesoureiro do Santo Ofício em Évora nos meados do séc. XVI.
         Esses 12 primeiros documentos relativos à questão do Bispo de Viseu abrem com umas “Memórias acerca do bispo de Viseu que fugiu de Portugal ao qual o papa, Paulo III, fez Cardeal contra a vontade do rei D. João III”, um longo e bem elaborado relato das peripécias e negociações que se seguiram à fuga, tal como foram seguidas e vistas pelo rei D. João III e pela corte portuguesa. A estas “Memórias” se juntam ainda um conjunto de cartas (do rei, do seu embaixador em Roma, Cristóvão de Sousa, dos cardeais Sancti Quatuor e Farnese, e do próprio D. Miguel da Silva). Pelo que se depreende das referidas “Memórias”, o interesse da Inquisição portuguesa por este caso prende-se com o facto de se considerar que as concessões que D. João III foi obrigado a fazer à Santa Sé para a sua resolução foram a moeda de troca para o Papa Paulo III aceitar finalmente algumas das exigências portuguesas relativas ao Tribunal do Santo Ofício.
          Pelo seu inegável interesse, aqui publicamos a transcrição dessas “Memórias”.

Memórias acerca do Bispo de Viseu que fugiu de Portugal, a quem Paulo III fez cardeal contra a instância de El Rei Nosso Senhor

         Sendo o Bispo de Viseu natural e vassalo e criado d’el Rei Nosso Senhor e seu Escrivão da Puridade e de quem confiava seus segredos, e tendo recebido de Sua Alteza muitas honras e mercês, sem causa alguma que para isso tivesse, foi destes Reinos sem licença de Sua Alteza, como fugido e pessoa que tinha cometido graves casos contra seu serviço. E sendo Sua Alteza avisado polo corregedor da comarca daquela cidade e polo juiz de fora dela como de noute se fora sem dar conta disso a alguma pessoa, movido El Rei Nosso Senhor mais de sua mui grande virtude, mais do que lhe merecia já então o Bispo e suas cousas, e lembrando-se de cujo filho era e por se não perder, mandou logo após ele D. Jorge, seu sobrinho, filho do Conde  [de Portalegre], seu irmão, polo qual lhe escreveu uma carta, cheia de tais palavras e de tantas mercês que, se sua tenção já não fora tão danada, ela só o fizera tornar; na qual não só o segurava para poder vir, mas ainda lhe aprazia deixá-lo em liberdade para poder fazer o que quisesse, depois de lhe dar rezão de si.

         E porque Sua Alteza tinha alguma presunção de se lhe ir a Roma, mandou logo despachar mui pronto a Cristóvão de Sousa, seu Embaixador, e logo após ele Jorge de Barros, polo qual, e polo dito Cristóvão de Sousa, mandou dar conta a Sua Santidade da ida do Bispo e pedir-lhe com grande eficácia que o não quisesse ver nem ouvir; pois não era razão, nem obra dina da sua pessoa e do lugar em que estava, receber em seu serviço o criado de Sua Alteza asim fugido, e de quem confiava seus segredos.

          Chegou Dom Jorge a ele em Plasença, e dali escreveu a Sua Alteza uma carta cheia das melhores palavras que podiam ser com a intenção, e as obras foram outras, dilatando porém sua vinda, e pedindo a Sua Alteza que quisesse ordenar como, ele tornando, pudesse viver seguro em seu bispado e servir a Deus nele.

          Juntamente com esta carta, apresentou o Conde, irmão do Bispo, a Sua Alteza uns apontamentos escritos da sua mão do que o Bispo queria que Sua Alteza lhe fizesse para ele poder vir, cuja sustância do primeiro Capítulo dele era:

          O 1º que Sua Alteza o recebesse com o bom tratamento com que recebe aqueles a quem quer fazer honra, e mercê;
         O 2º que Sua Alteza lhe segurasse sua honra, sua vida e pessoa de todos aqueles que lhe eram contrários, quaisquer que fossem, nem os ouvisse, nem cresse em suas cousas, nem comunicasse o que lhe tocasse com algum deles;
         O 3º que os Senhores Infantes folgassem de o aceitar em serviço, e lhe mostrassem muito boa vontade para sua honra e contentamento, e lhe escrevessem por suas cartas que assim faziam e cumpririam;
          O 4º que Sua Alteza não quisesse ouvir, nem procurar saber senão, assim como o fazia, de um dos mais aceitos homens a Sua Alteza de todos seus vassalos, ao qual requerimento se movia polo que Sua Alteza sabia de João Vaz e Francisco Dias naturais de Viseu;
          O 5º que estes dois não vivessem na dita cidade;
          O 6º que Sua Alteza castigasse os que disseram que ele avisara o Papa da vagante de Alcobaça:
          O 7º que Sua Alteza fosse servido dele entrar em seu Bispado e beneficios;
          O 8º que lhe havia de ser sempre Escrivão da Puridade, ainda que em Bispado estivesse; e os selos e livros de menagem estivessem em mãos de uma pessoa que por ele os tivesse; e que o seu escrivão servisse ante Sua Alteza;
          O 9º que Sua Alteza houvesse por bem que, no que tocasse a seu ofício, não fizesse cousa nova que fosse deminuir nele;
          O 10º que a carta que lhe Sua Alteza mandou, por onde o segurava, ficasse sempre valiosa e que não perjudicasse a isso estas mercês que pedia;
          O 11º que Sua Alteza lhe fizesse mercê que em sua vida não houvesse demanda na jurisdição dos coutos do Bispado de Viseu.

          Todas estas cousas assim como ele as pedia lhe concedeu inteiramente Sua Alteza por um alvará, que nas costas dos ditos apontamentos mandou, assinado por Sua Alteza. E aos Senhores Infantes mandou que lhe escrevessem conforme ao que pedia, o que fizeram, e mostraram suas cartas ao Conde, das quais ele se contentou; e não somente lhe concedeu tudo Sua Alteza mas ainda lhe tornou a escrever outra carta com muitas e boas palavras encomendando-lhe que se viesse logo.

          Nenhuma destas mercês aproveitou para se vir, e por derradeiro mandou seu sobrinho diante com uma carta a Sua Alteza na qual dizia que logo se punha em caminho, e que na posta viera se sua disposição e idade lhe dera lugar para isso; mas que a menos detença que no caminho pudesse fazer faria. E como ele nunca tivesse tal determinação nem sua tenção fosse outra senão a com que se partiu, usou sempre destas dissemulações, que Sua Alteza bem entendeu, mas não quis que se dissesse que por falta de lhe conceder o que ele pedia se não quisera vir; e não somente isso, mas ainda alevantou que o Infante o mandava matar por ordenança de Sua Alteza; e com este achaque, cuidou que ficava mais livre para abusar de sua vontade a cautelas, e seguiu seu caminho direito a Veneza; e daí negociou o capelo de Cardeal com as mesmas cartas que lhe sua Alteza e os Infantes tinham escrito para o fazerem entrar, e que ele pediu para se poder vir, afirmando ao Papa como Sua Alteza haveria por bem sua pormoção e receberia disto muito contentamento; às quais cartas Sua Santidade quis dar mais crédito do que devera, porque visto estava não poder Sua Alteza dizer aquilo, pois por Cristóvão de Sousa, seu Embaixador, e por Jorge de Barros, lhe tinha mandado pedir que o não visse nem recebesse em seu serviço, com rezões tão claras e tão manifestas, aos quais Sua Santidade então respondeu mui diferentemente do que despois se viu nas honras e mercês que fez ao Bispo.

         Logo que Sua Alteza teve esta nova, se mandou queixar ao Papa e pedir a emenda e satisfação que o caso requeria e que cumpria à autoridade e honra de Sua Alteza, na qual cousa nem desculpa Sua Santidade deu nisso; e a que então deu foi dizer que polas cartas que o Bispo lhe mostrara [o] admitira e fizera Cardeal; pola qual falsidade e mercê, ele merecia gravíssimos castigos. E foi logo mandado por Sua Alteza ao Embaixador que, não provendo Sua Santidade nisso como o caso demandava, que logo se espedisse de Sua Santidade e se viesse, como de feito se veio.

         Passadas estas cousas, de que somente se toca a sustância delas, assucedeu daí a alguns dias que o juiz de fora da vila de Arronches trouxe a El Rei Nosso Senhor certos maços de cartas, que disse que tomara a um correio que veio de Frandes, entre os quais se achou um maço grande cerrado e asselado com o sobrescrito para um Nuno Anriques, mercador cristão novo, morador que então era na cidade de Lisboa, o qual Sua Alteza abriu, e nele achou quatro cartas cerradas e asseladas escritas em cifra, com sobrescritos, metidas em uma folha de papel, e escrito em cima «no Nto» e com elas uma carta de um Agostinho Anriques, feitor do dito Nuno Anriques em Frandes, com uma carta de fora para ele e no cabo dela um capítulo que fazia menção que recebera um maço de cartas do dito «no Nto», as quais se haviam de dar a quem lhe mandara a cargação, que dezia que mandaria a Roma porque lhe pretenciam, do qual recebera uma carta tão amorosa e de tantos cumprimentos que ele, Nuno Anriques, lha não pudera assim escrever.

        E assim mesmo vinha outro maço com o sobrescrito para o Mestre Leão, de um Diogo Pires Neto, precurador em Roma de cristãos novos, no qual vinha para ele uma carta sua, na qual dezia que ao homem de Viseu se devia muito e que ajudava como bom amigo, e que uma carta mandava a sua mulher e sem sobrescrito, a qual ele desse em mão própria.

          Pontos das cifras

        Na primeira diz, falando com a pessoa a quem escrevia e dando-lhe conta de como havia recebido suas cartas «Que havia lá arreceio de lhe cá ir mal, por cujo respeito se lá em Roma fazia tudo com a temperança que cumpria»: quasi querendo dizer que, se isto não fora, se usara lá de maiores rigores.
          Em outra parte da mesma carta, falando do que fizera na proposição de Braga do Senhor D. Duarte, que Santa Glória haja, e querendo encarecer o que dissera no Consistório diz «Que o que ele disse foi causa de então passar o negócio, e que nesta parte ele mostrava com as obras, no que lhe não danasse, e nas palavras, que era servidor de Sua Alteza».
          Item – diz que o Rei e o Reino foram já declarados por  [aquelas] praças de Roma, se lhe não parecera melhor negócio esperar um pouco de tempo para ver se se emendavam que opor-se logo de rosto. E quando não, que aí lhe ficava o campo com muita mais justificação e razão que dantes.
        Item – E o não haver de entrar em Roma era graça; porque não havia cousa que o estrovasse, nem pudesse mudar o Papa de sua obra; e que com isto se acharam lá os Embaixadores de Sua Alteza tão chufados que perderam norte a tudo; e que pois os tempos não sofriam dar-se a eles com nenhum punhal polos peitos, como mereciam, que ao menos que seus parentes lhes mostrassem que o sentiam cá.
         Item – Que ao tempo que o Embaixador Cristovão de Sousa partiu de Roma para cá e se foi espedir do Papa, lhe falou Sua Santidade de maneira na cousa que cumpria, ficou para ter mão nele se não esperasse (?). E que o Emperador não escrevera cousa, nem mandara falar ao Papa, como lhe foi requerido por Sua Alteza, mas como quem queria paz; e que lhe foi pelo Papa escrito e respondido de maneira que o Emperador havia de ser o que mais o havia de ajudar.
         Item – Diz que não  somente Sua Alteza, que foi quem fez a sentença por que o Bispo foi desnaturado e aqueles que com ele comunicassem, mas todos os que foram no Conselho de se fazer, eram excomungados; e que depois que as cousas tornassem a sérias e piores (?) então se poeriam no Reino todo excomunhão e interdito.
        Item – Diz que o vigairo de Viseu tinha feito mui ruinmente seu ofício: porque para ele fazer o que devia, no próprio dia que se a sentença pubricou em Viseu houvera de poer interdito na cidade e em todo o bispado, e sarrar as portas a tudo, sem mais fazer nada; mas que pois ele cá não fizera o que cumpria fazer, se faria de lá tanto, que visse que não aproveitavam às boas.
         Item – E noutra carta de cifra diz «E detriminavam de ir por esta história adiante devagar, com muita temperança de tentar primeiro tôdalas vias de paz e concórdia que de rigor; e que prouvesse a Deus que não cumprisse por derradeiro que viesse com tudo; pois com isso fazia o que cumpria.
        Item – Diz que a primeira cousa que se fez, parecendo que, se não aproveitasse, que não danaria, fora –  estando o Geral de São Francisco para vir para esses Reinos depois de feitas suas visitações nas suas províncias de França e Castela – que lho mandara o Papa expressamente: que, sem fazer demora em alguma parte, se viesse direito a Portugal e da parte de Sua Santidade dissesse a Sua Alteza [o] grande sentimento que tinha do descontentamento que Sua Alteza tivera àquela Sé Apostolica e ao Santo Colégio dos Cardeais e a Sua Santidade, e no que aqui fizera contra ele, fazendo-lhe saber as excomunhões que tinha incorrido; e quanta demonstração lhe era necessária fazer pelo que cumpria à honra da Sé Apostólica e sua.
         Item – E o quisera primeiro amoestar paternalmente, pedindo-lhe que, como filho obediente, quisesse revogar e emendar o que havia feito; e não o fazendo, que Sua Santidade proveria nisso de tal maneira que Sua Alteza visse que a injúria feita a ele, Bispo, era feita a Sua Santidade e à Sé Apostólica, com tudo o mais que se em tal caso requeria. E que se isto fazia assim que, se por caso Sua Alteza fosse contumaz, que se pudesse proceder contra ele como contra Rei desobediente a ele e à Sé Apostólica.
       Item – Que as Bulas Delena (?) Domini se inviavam cá aos companheiros dos clérigos reformados, e assim se mandavam também ao Geral de Santo Agostinho, e seriam para se cá publicarem.
          Item – Diz que posto que  ao Emperador cá fosse requerido por parte de Sua Alteza que escrevesse ao Papa contra ele, Bispo, todavia o Emperador o fizera de maneira que não somente não danara como não podia danar cousa que [de] cá fosse para o Papa, e dissera ali a seu Embaixador, e mandara dizer, que quanto contentamento tinha e quanta razão tivera para o fazer Cardeal.
          Item – E por João del Monte Pulchano, que inviava reposta ao Emperador, lhe escrevia largamente Sua Santidade, largamente sobre esta matéria, fazende-lhe saber quanto descontentamento tinha do que Sua Alteza cá fizera conta ele, Bispo; e que ele, assim por lhe fazer graça como por escusar inconvenientes, tomasse a mão e escrevesse a Sua Alteza [que] tivesse vergonha e emendasse o mal feito e fosse a isto: que não estimara menos o que fizesse neste caso polo dito Bispo que se fosse pelo Cardeal Farnés, seu neto – e isto com tanta veemência que ele, Bispo, esperava que o Emperador fizesse milagres; e que o Emperador respondera que faria tudo o que Sua Santidade lhe mandava.
Item – que o Papa mandava por seu Núncio a estes Reinos o Bispo de Bergamo, que, posto viesse com cor e autoridade do Concílio, que o principal negócio porque vinha era o seu, por se fazer com mais autoridade; e que por ele escreveria Sua Santidade a Sua Alteza e se mandariam todas as provisões necessárias.
          Item – Que ele estava determinado a sofrer com paciência tudo, até ver se Sua Alteza, vendo a sem-razão que fizera, boamente se emendava, e quando não que aí lhe ficava campo franco para poer o ferro: e que se assentase que, assim como em paciência e temperança não o havia ninguém de vencer, assim no mais não havia de perdoar nada, ainda que nisso se arriscasse cem vidas. E que na pessoa de Sua Alteza se não falava no púbrico, senão como de cá se lhe dezia.
          Item – E noutra diz: E por via de Nuno Henriques escrevera, a qual há por boa e segura; e que ali em seus negócios falara com Diogo Fernandes Neto, seu solicitador, e que ele, Nuno Fernandes Neto, podia estar descansado que por suas cousas poeria toda sua valia e autoridade, e que ele poderia perder tudo, mas nunca ser desagradecido; que a ele naquele (?) tempo sabia que devia tanto e que desejava tanto mostrar-lho, que ainda que lhe fora muito trabalho o seu negócio, sua só amizade abastava a o mudar (?), e que nele era feito tudo quanto ele podia desejar até então, e quanto se podia pedir com a justiça era adiante, e que descansasse de todo naquela parte.
        Item – E noutra carta torna a dizer «E no púbrico se fala sempre de Sua Alteza como se ele tivera recebido as maiores mercês do mundo, porque assim cumpria por sua honra, e em secreto àcerca dos negócios dele, Bispo, se fazia também tudo o que via que podia aproveitar; e que [se] seu negócio assim ia, ele determinara fazer a guerra pública porque se não podia sofrer tanto mal».
       Item – E noutra diz «E a resposta que o Emperador mandou ao Papa por João de Monte Pulchano era que ele assim por seus serviços como por ver atentamente o serviço que Sua Santidade disso levava, queria tomar seu negócio, e escrever a Sua Alteza que abaixasse sua cólera e o recebesse em sua graça».
          Item – Que dezia o Emperador que Sua Santidade devia de preservar em seu peito um capelo de cardeal na criação que fazia para o dar a Sua Alteza para o Infante seu irmão, depois de Sua Alteza ser concertado com ele e não de outra maneira.
       Item – Que o Núncio que estava em Castela, João Bógio, que era seu amigo, a quem o Papa comentara este negócio, lhe escrevera e prometera que o Emperador faria milagres-
         Item – Que cumpria ganhar-se cá tão bem Luis Sarmento, Embaixador do Emperador, porque nele ia tão bem muito, e que o modo de falarem com ele fosse acenando-lhe que cumpria assim, para cousas grandes que lá viriam (?).
          Item – Que quanto à parte do Emperador, a cousa não podia estar melhor, e que ele a desejava já tanto como ele mesmo e lhe cumpria assaz por cousas que lá corriam, que seu embaixador aí, que era antão o Marquês de Aguilar, o visitava cada dia, e se servia dele nas cousas do Emperador como de seu servidor declarado.
          Item –  Que se lembrasse do que sempre lhe dissera, que sofrer nesta terra não era a mezinha dos seus males; e que lhe parecia que sofriam cá tanto e que ia tudo de maneira que viam que o podiam fazer; e que não havia parente nem amigo e que isso era o que cá queriam, e não o que o negócio havia mister.
          Item – E o menos que lhe lembrava era Portugal, nem a fazenda, e que a mais tivera (?) tanto e com tantas razões que se espantaria se as soubesse.

           E lidas por Sua Alteza estas cartas e as calidades das cousas que nelas escrevia cridas em tanta ofensa de Deus e de Sua Santidade e da honra de Sua Alteza, e tão provada por eles a tenção e zelo do Bispo contra seu serviço, mandou logo despachar Francisco Botelho, fidalgo da sua Casa, polo qual as mandou todas abertas (?) a Sua Santidade, a pedir-lhe que nisso fizesse o que lhe parecesse mais serviço de Nosso Senhor e seu, parecendo-lhe, e ainda havendo por mui certo, que vista a graveza delas e prejuízo que se seguia à sua autoridade, quisesse logo com mais brevidade prover com o castigo que elas mereciam, da conta que Sua Alteza lhe fazia saber.

        Nem somente Sua Santidade não proveu nisso como o caso requeria, e era obrigado assim por seu ofício, e por tirar o escândalo que das tais cousas não podiam deixar de se seguir a Sua Alteza quando visse a tibieza com que Sua Santidade mais ainda conservou o dito Bispo junto de si, e no próprio lugar que dantes tinha, mas ainda lhe fez muitas mercês e honras, cousa que em toda a parte se usa de julgar por grande esquecimento, mais ainda por ofensa feita a Sua Alteza; E posto que sua autoridade o obrigasse a usar neste caso de outra maneira, sua mui grande virtude e obediência à Santa Sé Apostólica, principalmente em tempo de tantas heresias, e tão perigosas, o fez antes sofrer que usar do que tal caso o obrigava

       E por Pero Dominico – que neste tempo veio de Roma, mandado a Sua Alteza sobre Aloisio Lipomano, seu Núncio, cuja entrada no Reino estava então suspensa polo que se prosumia dele, polas mesmas cartas dos cristãos-novos, que vinha assalariado por eles e à sua custa e despesa, de que se muito prejuízo seguia à Santa Inquisição, na qual, tanto que Sua Santidade houve por bem, que se não entendesse – logo Sua Alteza o mandou entrar, querendo antes comprazer a Sua Santidade em tudo, que ver-se que duvidava, no que ele mostrava, que seria servido; posto que o tempo em que se tratavam estas cousas do Bispo o não sofresse, mandou pedir a Sua Santidade castigo das culpas do Bispo e emenda do modo que até então ele tivera com Sua Alteza no mesmo negócio, apontando-lhe para isso alguns meios justos e razoáves

         Nenhuma cousa moveu Sua Santidade, e assim, endurecendo-lhe na emenda deste caso, como se não tivera nele tanta obrigação e Sua Alteza não fosse, o que lhe pedia. E sem responder a cousa alguma das que levou Pero Dominico, nem tratar do castigo do Bispo, escreveu ao seu Núncio que dissesse a Sua Alteza que houvesse por bem que ele regesse no spiritual e temporal o bispado e recolhesse as rendas dele e, de tôdolos seus benefícios, declarar que deles se havia de fazer – antes parecia que era isto um caminho para o Bispo se poder lograr delas.

        Ao qual Requerimento Sua Alteza respondeu ao Núncio «que quanto ao ele reger o spiritual do Bispado, Sua Alteza era mui contente que ele entendesse nisso e o fizesse conforme o serviço de Nosso Senhor e bem do Bispado; e que quanto ao recolher das rendas, que não havia por serviço de Deus ele o fazer, porque Sua Alteza as mandava recolher mui inteiramente, e as tinha secrestadas, sem bulir em cousa alguma delas, para se fazer disso o que fosse serviço de Nosso Senhor, e que lhe [não] parecia rezão, nem cousa para Sua Santidade, haver de querer que o Bispo que Sua Alteza tinha por tão culpado contra seu serviço e tão notoriamente havido por inimigo, dele vivesse e [se] sustentasse com as rendas do bispado de seus Reinos; e o Núncio, vendo que se lhe não permetia a arrecadação do temporal, não quis usar da administração do spiritual, e ficou o negócio em aberto.

          E esperando Sua Alteza a satisfação que tais cousas requeriam, em lugar dela e sem satisfazer em alguma, lhe mandou por Núncio João de Monte Palchano – aquele mesmo que nas cifras o Bispo prometia para negociador de suas cousas. Vendo esta matéria de Núncios tão perjudical e tantas vezes Sua Santidade requerido por Sua Alteza que os não mandasse, e confiando que, pois já que mandava este, seria para melhor e maior satisfação de Sua Alteza, no primeiro dia que chegou e lhe beijou a mão, lhe apresentou um breve de Sua Santidade, de queixumes do modo que Sua Altezat tinha com o Bispo e de lhe embargar suas rendas, dizendo-lhe expressamente que nunca das culpas do Bispo lhe constara; e que para a justiça que dele queria era necessário apontarem-se e decrararem-se.

          Vendo Sua Alteza este Breve e as palavras e sustância dele e o esquecimento tão grande que Sua Santidade tinha das cousas passadas neste caso, não pôde deixar de o sentir, tanto como era rezão e ele requeria: e logo despachou um correio ao Doutor Baltasar de Faria, pelo qual lhe escreveu « Que de sua parte dissesse a Sua Santidade o espanto que lhe ficava de tal Breve e de tamanho seu esquecimento, com todas as mais palavras que obrigava a calidade do caso, pedindo-lhe por deradeiro justiça do Bispo e castigo gravíssimo de suas culpas, as quais ele era contente de apontar de novo, pois Sua Santidade disto era servido, requerendo-lhe o necessário pera isso com tanta brevidade como já requeriam os termos em que as cousas estavam; dizendo-lhe mais que, quando isto lhe negasse, não poderia deixar de se queixar de Sua Santidade no Concílio e em qualquer outra parte onde as culpas do Bispo se manifestassem, e se veria craramente com quanta razão Sua Alteza se queixava; e cumpria pouco a Sua Santidade insistir em lhe negar o que tão justamente se devera de fazer pelo lugar em que está e por tirar o escândalo púbrico que disso se seguia à Cristandade».

        A nada desto respondeu o Santo Padre; antes este Núncio – como quem de Roma trazia principal cuidado para tratar deste negócio, ou como quem por inclinação e desejo que vira em Sua Santidade do bom fim dele, ou polo Bispo se haver por tão feitura do Cardeal Farnés, cujo criado o dito Núncio é – ofereceu meios neste negócio com tanta instância e importunação que se mostrava bem o desejo que em Roma havia de se concluir e ele tinha de por si o acabar. Os quais eram, scilicet

          O 1º Que o Bispo de Viseu renunciasse no Cardeal Farnés com palavra de nunca a ele tornarem os fruitos.
          O 2º Que os fruitos comesse o Farnés, e a administração o Núncio e o Bispo de Coimbra.
          O 3º Que o Bispo de Viseu consentisse coadjutor e futuro sucessor quem Sua Alteza ordenasse.

          De nenhum destes meios quisera Sua Alteza tratar; porque no que neles se apontava era visto não lembrar a Sua Santidade o respeito que se devera de ter a Sua Alteza, pois não podia parecer rezão tratar ele em negócio do Bispo de algum meio sem de Sua Santidade ter alguma satisfação no cumprimento daqueles que em um tal caso se lhe deviam. Mas porque Sua Alteza quanto mais as cousas lhe tocam, então pertende mais servir a Sua Santidade nelas e dar-lhe o contentamento que requer o particular amor que lhe tem, querendo já, por serviço de Deus e seu, esquecer o que nesse negócio é passado, e lembrando-se muito da necessidade que aquele bispado tinha de Perlado, quis mandar tratar com o Núncio de um só meio, o que Sua Alteza neste negócio podia vir; e tão bem polo boa vontade que tinha ao Cardeal Farnés, de cujo interesse nele se tratava.

        O meio de Sua Alteza era que Sua Santidade privasse o Bispo de seus benefícios, a que não faltavam causas mui justas e obrigatórias para o fazer. Que depois de privado, porvesse deles uma pessoa que lhe Sua Alteza nomeasse, que ficasse somente com a 3ª parte da valia da renda do dito Bispado, que parecia o menos que se podia dar a um Bispo que houvese de reger e governar um Bispado e fazer inteiramente nele seu ofício; e as outras duas partes Sua Santidade as desse em pensão ao Cardeal Farnés, que não podia ser tão pouca renda que a não devesse ele muito de estimar-

        Este meio tão justo não quis o Núncio aceitar; e vendo Sua Alteza que de nenhum outro convinha a seu serviço se tratar, quisera logo mandar cortar a prática deste negócio; mas lembrando-se do negócio da Santa Inquisição e da importância dele, e quão esquecidamente Sua Santidade estava à instância com que Sua Alteza há tantos anos o requer, vendo a grande necessidade que em seus Reinos havia de tão santo e necessário remédio para as heresias deles, quis, polo ganhar, passar polos inconvenientes que a sua autoridade e reputação se seguiam, tratando de qualquer maneira no negócio do Bispo, quanto mais da que podia ser mais favorável a ele; e mandou apontar ao Núncio que, se Sua Santidade lhe concedesse a Inquisição conforme o direito comum, como lhe vinha mandando pedir e o que tanta esperança o Cardeal Sanctafrol de sua parte lhe tinha dada, seria contente que os fruitos de tôdolos benefícios do Bispo de Viseu, e juntamente os fruitos do dito Bispado e provisão deles com título, veessem ao Cardeal Farnés, sem nisso intervir renunciação, mas algum consentimento do dito Bispo, nem o Cardeal lhe poder dar em algum tempo parte alguma dos ditos fruitos, nem cousa que fosse equivalente a isso; e que a pessoa que o Cardeal enlegese para em seu nome governar o dito Bispado fosse português e natural destes Reinos, de que Sua Alteza fosse contente, à qual o Cardeal ordenasse o que lhe fosse necessário para bem poder governar o dito Bispado; e que, vagando o dito Bispado e benefícios por resinação ou morte do Cardeal Farnés, não se entendesse vagarem em Roma: e logo Sua Santidade mandasse passar uma Bula em tal forma que em todo o tempo Sua Alteza pudesse e devesse estar seguro que, vagando o dito Bispado e benefícios, houvessem de ser providos à apresentação e suplicação de Sua Alteza como se vagaram em seus Reinos; e que a metade dos fruitos passados do dito Bispado e benefícios Sua Santidade a concedesse a Sua Alteza para em seus Reinos se gastarem em obras pias.

        Foi contente Sua Santidade de prover ao Cardeal Farnés, seu neto, do Bispado de Viseu, e assim de tôdolos benefícios que o Bispo fugido tinha; e lhe mandou passar disto suas Bulas, pelas quais tomou posse de tudo; e Sua Alteza lho mandou dar e que se lhe  levasse os fruitos deles; e quanto aos secrestados, assentou-se que, tiradas as despesas, do que ficasse levasse Sua Alteza a quarta parte para deles dispoer em obras pias, e as três partes deu-se ao Cardeal Farnés. Isto é o que se pode dizer sobre este negócio etc etc etc