EPIGRAMAS
Da obra poética de D. Miguel da Silva, para além da mais extensa “De Aqua Argentea”, chegaram-nos apenas estes sete epigramas latinos que aqui se apresentam (por ordem cronológica), os únicos sobreviventes de uma produção que seria decerto bem maior. Há notícia, de facto, de uns Ad Emmanuelem Regem Carmina, hoje perdidos, cujo conteúdo desconhecemos (mas que seriam necessariamente anteriores a 1521, ano da morte de D. Manuel), bem como de um também desaparecido epigrama a Hanno, o célebre elefante que integrava a embaixada de 1514 ao Papa Leão X. As traduções apresentadas são nossas (embora tendo-nos socorrido, nos casos em que existiam, das traduções para italiano de Sylvie Deswarte).
1.
De Camillo Vitellio
Pyrrum post magna atque inclyta
fama est occubuisse manu.
te surriputt post inclyta facta
dextra missus ab arce lapis.
Heu fatum occultum, multis distantia
Clara duorum facta exitus unus habet.
2.
No farol-capela de São Miguel-o-Anjo, na Foz do Douro
Portus eram quondam, sed falso nomine dictus
re vera Syrtes, Scylla, Charybdis eram.
Sylvius ad Portum fecit, Portumque vocari
posse dedit, totus navita me petito,
praebebis faciles undosa per aequora cursos
turris, quae Silvi munere ab astra nitet.
At inter scopulos et dira pericula praestat:
ut rabiem spernas et pelagi bravia.
Dat plausu atque optat Michaeli Nestori anos
quandoquidem vitam prorogat ille tibe.
3.
Em Santiago de Compostela
Quisquis templa subis divo sacrata Iacobo
Hospes cum multa numen adito fide,
Nam seu in vita seu in post tempora vitae
Coelum optas praestare hic tibi utrumque potest.
Vivus servavit multos atque impia corda
Imbuitaeterni religione dei
Illi et multod servare et corpora fessa
Nunc quoque post mortem posse levare datum est.
Ecce ergo quem aevus cruciabat calculus, aram
Ut tetigi hanc, morbum deposui subito.
Atque haec in tabula posui pendente Michael
Sylvius ex voto carmina, dive, tibi.
4.
A Blosio Palladio, enviando-lhe o poema De Aqua Argentea
decus, o Blosi, gratissime Musis,
cordis tempus in omne mei;
Regi nuper misi, tibi carmina mitto,
carmina judicio vitam habitura tuo,
si non damnas, Regi, te auctore, placebo
si laudabis, Rex mihi magnus eris.
5.
Ad Titianum pictorem
A te uno pingi voluit, Titianem, Diegus,
pictores unum quem probat ante allios;
qui sibi tam simile facis hunc, ut dimidiatum
se credat, magnum hoc efficis arte tamem.
At contra suaves mores et pectus et illud
tam cultum ingenuis artibus ingenium
formare a se uno voluit, Titiane, Diegus.
Quanto est hoc quam illud rectius et mellius?
Qui pingenda tibi quae sunt moritura reliquit,
formanda assumsit nom moritura sibi?
6.
Ad urbem Romam
Marmora praeclaros testantia fronte triumphos
Atque magistratus inclyta Roma tuos,
In medio mansere foro dum Roma manebas
Postque deos orbi iura secunda dabas.
Ast ubi te indignis fregit Fortuna ruinis
Obruerat titulos alta ruina tuos;
Tamque diu in tenebris tantis jacuisse videntur
His veluti fato debita temporibus como se destino dívida desses
Quae modo Alexander patria te dignus avoque
Paulo, inventa tibi marmora restituit
Tu Capitolina meliore in sede reponis
Et legeris magni munere Pharnesii.
7.
In statuam puellae ad Aquam Virginem
Quae nuper de me multi cecinere caveto,
Hospes, ne male te carmina decipiant.
Non dea, non fontis numen, nec Nympha Dianae,
Sed decet id quod sum dicere simpliciter.
Sum statua ut cernis specie formata puellae,
Quam placida oppressit, dum fluit unda, quies.
Et qui me fecit similem fortassis amavit,
At surdam precibus, quod sopor ipse notat.
Iulius hic posuit, nomen quoque Virginis addit
Conveniens Fonti temporibusque suis.
1.
Sobre Camillo Vitelli [1]
Diz-se que o vitorioso Pirro, após grandes e ilustres feitos
acabou por morrer pela mão de uma mulher.
E também a ti, Vitelli, depois de ilustres feitos, te roubou a vida
a mão direita de uma mulher com a pedra enviada do castelo.
Ah, por um destino oculto, a muitos séculos de distância,
dois feitos têm claramente um mesmo resultado!
2.
Epigrama no farol-capela de São Miguel-o-Anjo, na Foz do Douro [2]
Porto eu era outrora, mas erravam o nome:
Sirtes, Scilla ou Caribdis era eu.
Silva fez em mim um porto, Porto me podem chamar,
pois, a quantos marinheiros me procuram,
darei fácil passagem entre as agitadas ondas
graças à torre que Silva fez brilhar rumo às estrelas.
Entre as rochas e como garantia contra terríveis perigos:
a espuma furiosa e os mares bravios.
Aplaude e roga para que Miguel viva longos anos,
pois ele a tua vida prolongou.
3.
Epigrama em Santiago de Compostela [3]
Quem quer que sejas, ao entrares no templo consagrado a Tiago
como visitante, aproxima-te da divindade com grande fé,
pois se, durante a vida ou após ela,
desejas o céu, em ambos os casos te pode satisfazer.
Vivo, muitos ele salvou, e encheu
os corações ímpios da religião do Deus eterno.
E também agora, depois da sua morte, muitos
pôde salvar e curar os seus corpos.
Vede: eu, a quem um cálculo selvagem atormentava,
desde que toquei este altar fiquei curado da doença.
E assim, numa tabuinha suspensa eu, Miguel da Silva,
coloquei este poema dedicado a ti, ó Santo, como ex-voto.
4.
A Blosio Palladio, enviando-lhe o poema De Aqua Argentea [4]
Glória às Musas, ó Blosio, às Musas gratíssimo,
em tudo metade do meu coração.
Há pouco enviado ao Rei, este poema te envio,
e o poema viverá pelo teu juízo:
se não condenares o autor, isso agradará ao Rei,
se o louvares, Rei maior serás para mim.
5.
Ao pintor Ticiano [5]
De ti, Ticiano, queria Diego um quadro,
tu que de entre os pintores seu preferido és,
e feito com tal semelhança que, ao vê-lo, cresse
que ao espelho se via, fruto só da tua magna arte.
Mas as maneiras gentis, o talento, aquele
tão culto e engenhoso caráter, ó Ticiano,
queria Diego tornar único em si mesmo.
De uma e outra coisa, qual a mais justa e melhor:
por ti ser pintado o que está destinado a morrer,
ou ele mesmo, pelo teu traço, tornar-se imortal?
6.
À cidade de Roma [6]
Estes mármores, que dão testemunho, ó ínclita Roma,
dos teus preclaros triunfos e dos teus magistrados,
permaneciam em pleno Forum, enquanto tu, Roma, estavas de pé
e impunhas ao mundo leis apenas inferiores às dos deuses.
Mas, desde que a Fortuna os quebrou em indignas ruínas,
uma profunda ruína enterrou os teus títulos.
E estes mármores, por tanto tempo sepultados em tais trevas,
como dívidas da fortuna destes nossos tempos,
agora Alexandre, mui digno de te ter a ti como Pátria
e a Paulo como antepassado, os redescobriu e tos restituiu,
e tu os colocas de novo na mais digna sede Capitolina,
e assim dás a ler a munificência de Farnese
7.
Para a estátua de uma jovem perto do Acqua Verginem [7]
Tem cuidado, visitante, não te enganem erradamente
os poemas que há pouco muitos cantaram sobre mim.
Não sou uma deusa, nem a divindade da fonte, nem uma ninfa de Diana,
mas devo dizer apenas simplesmente o que sou:
sou uma estátua, como vês, feita segundo o modelo de uma jovem,
a quem uma plácida quietude prende, enquanto corre a água.
E quem me fez amou talvez uma igual,
mas que era surda a seus rogos, o que esta mesma quietude manifesta.
Júlio me colocou aqui, e deu-me também o nome de Virgem,
que convinha à Fonte e à sua época.
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[1] Camillo Vitelli (1459-1496) foi um célebre condottiero italiano, que se pôs ao serviço dos franceses de Carlos VIII nos últimos anos da sua vida. A sua morte ocorreu dois dias depois de ser atingido por uma pedra durante o cerco de Circello, pedra essa que, segundo uma notícia incerta, teria sido atirada por uma mulher – tal como, também segundo a lenda, teria sucedido a Pirro. Este epigrama, transcrito por Paolo Gioviona sua obra Elogia virorum bellica virtute illustrium, livro IV (1551), onde não tem qualquer indicação de data, datará talvez dos primeiros anos de D. Miguel da Silva em Itália (muito embora sem certezas, dado que esta evocação tardia de Vitelli poderia igualmente ter uma dimensão política, e ser uma alusão a qualquer “vitória pírrica” de alguém ao serviço dos franceses em anos muito posteriores).
[2] O epigrama encontrava-se numa placa, hoje perdida, colocada na parede deste farol-capela, mandado edificar por D. Miguel da Silva (que era também abade comendatário do couto de São João da Foz), em 1927, como atesta uma outra inscrição latina ainda hoje existente na parede voltada para o rio, a qual, traduzida, diz: “Miguel da Silva, bispo eleito de Viseu, mandou construir esta torre para dirigir a navegação, ele mesmo deu e consignou campos comprados com o seu dinheiro, com o rendimento dos quais foram acesos fogos de noite perpetuamente na torre, no ano de 1527”. O farol fazia parte de um projeto mais vasto de apoio à navegação na barra do Douro, e, em 1536 é complementado com a construção de um templete circular, albergando a estátua representando Portumnus, o deus romano dos portos, a meio da foz, e quatro colunas assinalando os rochedos perigosos. Uma vez que o epigrama refere exatamente estes rochedos, é possível que ele date apenas desse mesmo ano. O texto do epigrama é reproduzido por Manuel Pereira de Novaes em Anacrisis Historial, Porto, Biblioteca Municipal, Volume II, 1913, p. 199
[3] O epigrama é transcrito pelo próprio D. Miguel da Silva numa carta a Blosio Palladio, secretário do Papa em Roma, datada de S. João das Rias, 18 de junho de 1536. A visita a Santiago de Compostela deve, pois, ter-se realizado pouco tempo antes. Texto original em “Letteri di interessi diversi di Mons. Blosio Palladio”, fl. 93-94v, Biblioteca Corsini, Archivio de Santa Maria in Aquila, vol. 8.
[4] Carta a Blosio Palladio, datada de 27 de novembro de 1537.
[5] O epigrama data de 1541, ano em que Ticiano fez o magnífico retrato de Don Diego Hurtado de Mendoza, então embaixador de Carlos V em Veneza, de figura inteira e de pé (texto Portugal de Faria, 1905, Portugal e Italia. Litteratos portuguezes nela Italia, Giusti)
[6] O epigrama foi escrito por ocasião da colocação dos Fasti Capitolini no Capitólio, em 1546, por iniciativa do Papa Paulo III (antes, Cardeal Alessandro Farnese). Estas placas de mármore com a lista de magistrados da República Romana (entre o século V b.C. e o reinado de Augusto), e que estavam à época no Forum, foram descobertas em estado precário por altura do desmantelamento das suas ruínas (afim de serem retirados materiais para a obra da Basílica do Vaticano) e transferidas solenemente para o Palazzo dei Conservatori, redesenhado por Miguel Ângelo (atual Museu Capitolini). Por iniciativa do Senado de Roma, o epigrama de D. Miguel da Silva foi igualmente gravado numa placa de mármore e colocado no Salão Nobre do palácio, onde ainda hoje se encontra. Para o texto latino, vide Arlindo Correia.
[7] O epigrama diz respeito a uma das estátuas (uma jovem deitada) da “Fontana della Vergine” na Villa Giulia, que o Papa Júlio III mandou construir nos arredores de Roma a partir de 1550. A inauguração da fonte deu-se em 1552, pelo que é essa a data do epigrama. In Eduardo del Pino González, “El poema Ad statuam puellae del Cardenal Viseu y la “Vergine della fontana” de Villa Giulia en Roma”, in Ágora. Estudos Clássicos em Debate 18 (2016). O texto latino provém de uma cópia hoje guardada na Biblioteca del Monasterio de El Escorial, ms. &‐IV‐22, fol. 198r.